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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2020

A criança fora da infância (II)

     Muito hesitante, preparou-se e vestiu-se com receio de que ninguém a reconhecesse e receosa das repercussões seguintes que aquela pergunta pudesse, ainda, ter no seu corpo. Antes do pequeno-almoço, a mãe da menina beijou-a e olhou bem para o seu rosto, enquanto lhe fazia uma festa carinhosa. O pai levou-a, como sempre, até à escola — entre sorrisos e algumas canções que sempre trauteava. Tudo permanecia igual e feliz. Só ela se sentia diferente e nunca antes tão só num duelo inglório com aquele que a todos pareceria um inimigo risível: uma pergunta. Na rua, durante o percurso até à escola, percebeu que o céu, as coisas e as pessoas ardiam nos seus olhos e o seu perfil delineava-se com contornos proeminentes. Pontualmente, o seu corpo tremia, como se alguma coisa de dentro dela quisesse sair mas tivesse de lá permanecer. Sentia que todas as pessoas a olhavam como muita atenção, detendo-se demasiado tempo nela. A cada olhar tinha a obsessiva sensação de que todos podi...

A criança fora da infância (I)

A criança começou a sair da infância depois de uma aula. O professor tinha feito um aparte na matéria, dizendo: «Todos nós seríamos, obviamente, capazes de dar a vida pelos nossos pais». Depois desta afirmação, « a criança não pôde mais coincidir plenamente com a infância » .  Ainda por cima, os outros colegas concordaram prontamente. Só ela ficara concreta na postura, perplexa durante o recreio, esquecida do lanche e de brincar, longe desse estado de distracção em que nada parece premeditado: a infância. E tudo por causa da afirmação do professor, latejando, ainda, na sua cabeça, durante o recreio.  Que ideia tão estranha: nunca antes se havia debatido com uma pergunta tão grave. Imaginava-se tentando salvar os pais de um eventual desastre, dando por eles a vida — ao mesmo tempo que duvidava fortemente da sua capacidade de suportar dor. E, no entanto, não deixava de considerar que deveria estar apta a passar por uma qualquer provação — afinal, fora o professor quem o dissera....

A omissão da consoante -s antes do pronome -nos (e de mais nenhum!)

No nosso dia-a-dia não falamos de termos como «conjugação pronominal» ou «conjugação pronominal reflexa», mas a verdade é que todos nós as usamos diariamente. A «conjugação pronominal» é o conjunto de formas flexionadas de um determinado verbo em associação aos pronomes pessoais átonos (também chamados clíticos): -me ,  -te , -lhe , -o , -a , -nos , -vos , -lhes , -os , -as , -se.  Vejamos alguns exemplos: 1) «Ele tinha um carro antigo. O meu pai comprou -o. »   -o é complemento directo (substitui «um carro antigo») 2) «Ele vendeu -nos a casa por tão pouco.» -nos é complemento indirecto (a quem se vendeu) 3) «A Maria comprou uns lindos brincos e ofereceu -mos. » -mos é complemento directo (substitui «uns lindos brincos») e indirecto (a quem foram oferecidos). 4) «Pedimos- vos que ficassem em casa...»  -vos é complemento indirecto (a quem se pediu). Quando o complemento directo ou indirecto é a mesma pessoa/objecto que funciona como sujeito da frase — veja-s...

Trade Mark, de António M. Pires Cabral, ou Quando as coisas revelam

António M. Pires Cabral é um poeta transmontano premiado, o autor dos poemas de «marca registada» de que hoje vos falo.  Trade Mark  é o primeiro livro que dele leio, mas não será decerto a sua melhor obra de poesia nem a mais sofisticada. Não carrega de todo a coroa do hermetismo, mas denota bom gosto e discrição e tem a vantagem de contar histórias. Afinal, esta é uma poesia autobiográfica, o que consola a faceta bisbilhoteira que todos temos (negá-la é negar uma boa parte de Shakespeare). Outro dos motivos que me faz considerá-lo um bom livro é o facto de me levar a formular uma questão mais ampla. Que temas estão ou devem estar — se é que os há — vedados à poesia? Deve o género poético restringir-se a musculadas temáticas como o Amor e a Morte, como se as confessasse? Ou pode o lirismo debruçar-se sobre calos, asma nocturna, azia e pastilhas que a atenuem, ou mesmo latas de fermento Royal ? Se há dois temas à volta dos quais se criam variações mais ou menos circenses, talv...