Trade Mark, de António M. Pires Cabral, ou Quando as coisas revelam

António M. Pires Cabral



António M. Pires Cabral é um poeta transmontano premiado, o autor dos poemas de «marca registada» de que hoje vos falo. 

Trade Mark é o primeiro livro que dele leio, mas não será decerto a sua melhor obra de poesia nem a mais sofisticada. Não carrega de todo a coroa do hermetismo, mas denota bom gosto e discrição e tem a vantagem de contar histórias. Afinal, esta é uma poesia autobiográfica, o que consola a faceta bisbilhoteira que todos temos (negá-la é negar uma boa parte de Shakespeare).

Outro dos motivos que me faz considerá-lo um bom livro é o facto de me levar a formular uma questão mais ampla. Que temas estão ou devem estar — se é que os há — vedados à poesia? Deve o género poético restringir-se a musculadas temáticas como o Amor e a Morte, como se as confessasse? Ou pode o lirismo debruçar-se sobre calos, asma nocturna, azia e pastilhas que a atenuem, ou mesmo latas de fermento Royal? Se há dois temas à volta dos quais se criam variações mais ou menos circenses, talvez seja igualmente válido chegar até eles falando das coisas banais, do que se compra diariamente. E mesmo os poetas se vergam à banalidade de comprar e ter de ter coisas.

Em Trade Mark os produtos de que António M. Pires Cabral nos fala, a maioria deles já extintos, são pretextos para percorrer a infância e a adolescência com humor e nostalgia, com o olhar adulto que antecipa o fim das coisas e das pessoas que se emprestaram aos versos.

Lemos por isso, sobre Brylcreem, uma espécie de brilhantina usada para «sujeitar o cabelo insurreto» da adolescência (Cabral 2018: 15) e seduzir raparigas que, como o cabelo, cedessem; sobre os cigarros Português Suave que, com a Torre de Belém na caixa, orgulhavam o peito patriótico do pai fumador, valendo-lhe o primeiro enfarte; sobre os preservativos Durex, ou as pudendas «camisas-de-vénus» (Cabral 2018: 48) e os pós-asmáticos que o Sr. Aníbal deixou acabar, acabando também ele naquele dia. Ainda sobre a angustiante consciência do infinito a que a lata de fermento Royal instigava.

O poema «As latas do Fermento Royal» lembrou-me do dia em que também tive, através de uma mera embalagem, num magusto da escola, uma epifania semelhante: comia castanhas e olhava para o meu leite com chocolate quando percebi que o pequeno pacote mostrava um rapaz segurando outro leite com chocolate igual ao meu, igual ao dele, e assim por diante, até eu ver ali, como António M. Pires Cabral formula, «um símile barato do infinito» (Cabral, 2018: 22). 

Esta poesia cria analogias entre os consumos de outrora e os temas trágicos de sempre — por isso há pathos nos calos dos pés, para além dos irresolúveis calos da mente, a que não acode nem calicida nem Dr. Scholl. 

Trade Mark é, no fundo, uma ode ao que as coisas lembram e revelam.


Abaixo podem ter um amuse bouche. 


«Calicida Herculano»

Hoje os calos da Mãe repetem-se em mim
E lembra-me com ternura o calicida Herculano.
Mas vou com os tempos e — hélas! — com a perfídia 
do marketing, e, em vez de inocente
ácido salicílico do calicida Herculano,
uso os sofisticados produtos Dr. Scholl.

(Estou a falar de calos nos pés, bem entendido.
Porque os outros, aqueles que nos nascem
Por dentro como cogumelos viciosos
Em tronco apodrecido — a esses calos
Não há Dr. Scholl que lhes valha,
E o calicida Herculano muito menos.)

(Cabral 2018: 18)


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Título: Trade Mark
Autor: António M. Pires Cabral
Edição: Cotovia, 2018

Elsa Alves

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