Homenagem em forma de pergunta, parte I



A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off.


Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta.

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Sandra Cristina Fernandes Pera
Médica de Medicina Geral e Familiar

Sandra Cristina Fernandes médica de família
Sandra Fernandes

1) Porquê Medicina?

Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: cada doente pede um tratamento, um cuidado e atenção personalizados, individualizados.

2) Aquela frase do Hipócrates «Que o teu remédio seja o teu alimento?» é hipócrita ou é tem validade científica?

Não considero que seja uma frase hipócrita. Acho que os hábitos de vida que cultivamos vão fazer a diferença entre termos 90 anos e estarmos acamados ou termos uma idade longeva com mobilidade e qualidade de vida — no fundo uma vida que ainda podemos aproveitar.

3) Como vês a tua especialidade, MGF?

Considero que MGF foi durante muito tempo o primo pobre do SNS. Quando comparados com outros médicos de outras especialidades do hospital, os médicos de família eram muitas vezes vistos como inferiores. Felizmente, nos dias de hoje, vejo uma mudança progressiva nesta mentalidade.

4) O que dirias a uma pessoa anti-vacinas?

Que o nosso trabalho enquanto médicos é expor a evidência científica existente demonstrando os seus prós e contras. No entanto, considerando que as vacinas são opcionais, tomá-las ou não é uma decisão que cabe ao utente. A recomendação é que sejam feitas, mas trata-se sempre de uma decisão que deve ser individual. E as consequências, essas, ficarão na consciência de cada um...

5) Um episódio caricato que nos possas contar.

Tenho imensos episódios caricatos. Um deles foi ter feito toda uma consulta, passado exames e receitas e, no final, ao despedir-me, o doente dizer: «Mas ainda vou falar com um médico!?» [risos].

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Cristina Isabel Pereira Moreira
Ginecologista

Ginecologista Cristina Isabel Pereira Moreira
Cristiana Moreira


1) O que motivou a escolha da Saúde e especificamente da Ginecologia Obstetrícia?

Na minha família não há médicos e nunca fui incentivada, por exemplo, ao serão, em conversas familiares (como acontece nalguns casos), a seguir uma profissão específica. Acho que, talvez subtil e inconscientemente, as histórias de soldado do meu avô — que na tropa encarnou a personagem e a profissão de enfermeiro sem o ser verdadeiramente —, influenciaram a escolha da saúde como caminho profissional. Já a escolha da Ginecologia e Obstetrícia foi uma decisão motivada pelas vivências da minha bisavó (mãe do meu avô, outrora soldado) que foi parteira da aldeia, e parteira de 12 dos seus 14 partos. «Só custa até ao segundo. A partir do terceiro não precisas ajuda!», dizia-me.

2) Como médica ginecologista, como descreverias o momento do parto para a mulher?

Nunca estive no papel de parturiente, por isso temo que a minha descrição do parto, por mais romântica que seja, não faça jus à magnitude da emoção que presumo que se sinta. Ainda assim, consigo dizer que há indubitavelmente um sentimento partilhado pelo médico e pela mulher naquele momento: a gratidão de poder fazer parte do início de uma vida.

3) Qual foi a situação de maior stress que vivenciaste até hoje em contexto de trabalho?

Curiosamente não foi em contexto clínico. Acho que nunca fiquei tão nervosa e triste como no momento em que percebi que uma utente nova na minha consulta tinha exposto, numa rede social, o meu nome associado à sua revolta perante a minha atuação como médica. Evidentemente que os utentes têm o direito de se expressar, mas existem locais e formas apropriadas para o fazerem.

Atualmente as redes sociais são plataformas em que não há freio ao insulto e ao ataque alheio. Esquece-se constantemente que a liberdade de um termina na fronteira da liberdade do outro. Fala-se muito de negligência médica, violência na Medicina, mas raramente se dá voz ao médico que sofre de violência verbal e até física, em pleno exercício da sua atividade profissional. Tampouco se refere a quantidade de histórias nas quais somos vítimas de difamação pública.

Felizmente a situação que me implicou ficou resolvida.

4) Qual é a tua posição em relação ao aborto e porquê.

Para se falar sobre a posição de um médico obstetra e ginecologista em relação ao aborto é preciso ter em conta as circunstâncias em que é praticado. À partida, poder-se-á dizer que a minha descrição do momento do parto e a minha posição em face do aborto não se coadunam. Isto porque de facto sou a favor da interrupção voluntária da gravidez e concordo com os parâmetros defendidos na lei vigente no nosso país. A mulher tem direitos e a Saúde tem o dever de a ajudar a exercer esses direitos em segurança.


5) Hoje em dia fala-se muito sobre a chamada «violência obstétrica», uma discussão que as redes sociais têm incendiado. Que nos tens a dizer sobre isto?

Choca-me que a opinião pública se apoie em relatos de casos para fundamentar e dar vida a um conceito tão ofensivo como este. O momento do parto é muitas vezes stressante e amiúde em tudo foge às ideias preconcebidas e às expectativas criadas pelo casal.

Trata-se de um ato médico, humanizado ao mais alto nível pelo médico obstetra (também ele humano!) — em alguns casos também ele pai ou mãe. Reconheço que a relação entre médico e doente de hoje é bem mais aberta, muito diferente daquela que se via há alguns anos, e ainda bem! Mas julgo que por vezes há uma má interpretação daquela que é a nossa atitude objectiva num momento de tomada de decisões médicas.

Creio que nenhum de nós, médico obstetra ou enfermeiro parteiro, investe tanto tempo e sacrifício em estudo e formação para ser, voluntária e intencionalmente, «o terror» de um casal que dá à luz. Parece-me, aliás, difícil exercer esta profissão sem de facto se gostar muito do que se faz no dia-a-dia. E, apesar da diminuição da taxa de natalidade no nosso país, o cuidado à grávida e o parto estão na ordem do dia: preenchem muito tempo do nosso quotidiano enquanto médicos. Resta-nos investir na desconstrução deste conceito pejorativo, continuando, com rigor e suporte científico, a «dar vida à felicidade».


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Miguel Correia Machado
Médico Interno de Medicina Geral e Familiar


Médico de família Miguel Correia Machado
Miguel Machado


1) Porque escolheste seguir Medicina?

Porque é ciência, arte; dor e exultação. É rigor e compaixão, saber e ternura. É, e digo-o talvez até de modo egoísta, um trabalho que se ergue sobre uma fundação humanista. É ajudar — e rende-me um salário.

2) Descreve em traços gerais os comportamentos de um doente com o qual seja difícil vs fácil de lidar na consulta.

Um doente «fácil» é um doente atento, cumpridor, respeitoso, com vontade de entender e discutir o plano a seguir. É um doente que consegue transmitir as suas angústias e receios de forma clara e estabelece uma relação de franca confiança, o que nem sempre é fácil quando se está numa posição de fragilidade. Um doente «difícil» é o contrário de tudo isto e que, muitas vezes, se pauta pela rudeza e má educação.

3) Qual a especialidade que mais te intriga e porquê?

A Neurologia, a Psiquiatria e as Neurociências são intrigantes. Encontramo-nos a léguas de entender na globalidade o processo e o processamento sináptico que temos instalado no CPU que é o nosso encéfalo, tal como as suas implicações. Seja sob a forma clínica, explorando um fenótipo variante ou alguma maleita a fazer das suas, seja a teorizar num papel de rascunho, é uma área que me suscita especial fascínio.

4) A tua opinião sobre a chamada «medicina chinesa».

Dispensável, enganadora, dissuadora de boas práticas médicas; ineficaz, por demonstrar. Infelizmente não são poucas as vezes em que conhecemos doentes a precisar de um diagnóstico e/ou tratamento específicos e que, por fragilidade e desespero, se deixam seduzir pelo conto do vigário. Mas o ónus da culpa não deve recair sobre os doentes, mas antes sobre os indivíduos que prometem o que não podem cumprir e afastam os utentes de um plano médico eficaz, sustentado por evidência, ou pelo menos atrasam esse processo e, pelo caminho, conseguem ainda arrecadar soberbas quantias de dinheiro. Designar de «medicina» essa forma de curandeirismo medieval é uma blasfémia.


Comentários

Anónimo disse…
Adorei ler os testemunhos da Sandra, Cristiana e Miguel .
Anónimo disse…
Excelente iniciativa! Os três contributos são pertinentes e com sentido de humor!
Que venha a parte seguinte!
Julio disse…
Muito Bem!
Joana disse…
Excelente ideia! Quero mais, adorei!

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