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A criança fora da infância (II)

   

Texto de Elsa Ribeiro Alves

Muito hesitante, preparou-se e vestiu-se com receio de que ninguém a reconhecesse e receosa das repercussões seguintes que aquela pergunta pudesse, ainda, ter no seu corpo.

Antes do pequeno-almoço, a mãe da menina beijou-a e olhou bem para o seu rosto, enquanto lhe fazia uma festa carinhosa. O pai levou-a, como sempre, até à escola — entre sorrisos e algumas canções que sempre trauteava. Tudo permanecia igual e feliz. Só ela se sentia diferente e nunca antes tão só num duelo inglório com aquele que a todos pareceria um inimigo risível: uma pergunta.

Na rua, durante o percurso até à escola, percebeu que o céu, as coisas e as pessoas ardiam nos seus olhos e o seu perfil delineava-se com contornos proeminentes. Pontualmente, o seu corpo tremia, como se alguma coisa de dentro dela quisesse sair mas tivesse de lá permanecer.

Sentia que todas as pessoas a olhavam como muita atenção, detendo-se demasiado tempo nela. A cada olhar tinha a obsessiva sensação de que todos podiam perceber o que se passava, tornando-se hostil o confronto com as pessoas. 

E por onde quer que passasse não era imune à paisagem: as árvores altas intimidavam-na, os edifícios eram já mais resolutos no firmamento em que a cidade mergulhava. E o crescimento de tudo, com ela, nada tinha de edificante: era soturno e espicaçava-lhe o pensamento. 

Quando encontravam alguém conhecido na rua, suspeitava sempre de que a sua dúvida fosse descoberta, e intrigava-se a cada declaração alheia sobre a sua beleza: «Como está crescida», «Que cabelos densos e fortes». Saberiam já da pergunta que a alargava e transfigurava, não ousando dizê-lo?

Na escola, no recreio, comendo o lanche que a mãe lhe tinha mandado, percebeu que todos os sabores eram, agora, demasiado ácidos ao seu palato, intensificando-se ao tocar os lábios, quentes de tanta lucidez. 

A memória de todos os cheiros inculcava-se nas suas narinas. E estava certa de que o seu coração crescera, de que as válvulas abriam e fechavam com um fervor que nunca antes conhecera. Inquietava-se com tudo isto, quando as amigas a chamaram, insistindo para que brincasse.

Inicialmente, com muito esforço e contrariada, corria, escondia-se, sibilava lengalengas habituais, mas passados alguns minutos estava, contra todas as expectativas, imersa nessas brincadeiras. Encontrava-se salva, na suavidade antiga, momentaneamente esquecida daquela questão. 

Começava então a perceber que, quando se mexia, falava, gritava parecia que conseguia, por alguns minutos, escapar-se à pergunta inclemente que se escondia em si, num canto remoto — como uma fera que dorme.

Mas nunca passava muito tempo até que tropeçasse consecutivamente em si mesma, numa dissecação que tanto a repugnava como a atraía, com lascívia. Começava como um estranho sussurro, a quem ela dava a mão, saindo do conforto de um casulo intacto para ser, depois, enredada pela dúvida. 

Com a passagem dos dias, a criança começava a perceber que seria impossível um recuo total e cabal à infância. Não mais poderia voltar a ser como antes. Tudo permaneceria ingénuo, mas, ao mesmo tempo, cáustico, ferindo-a, pela primeira vez. O despontar do dia, as tarefas e a rotina eram como uma bênção afastando com eficiência a pergunta, que se insinuava, ainda mais pesadamente, nas férias de Verão. 

Os pais costumavam alugar uma casa junto à praia e era habitual, depois de almoço, dormirem uma sesta, com a janela aberta e as ondas a reverberar no sono. Não fossem esses momentos, os passeios com o pai pelo areal, os beijos ternos da mãe, e a serenidade que lhe traziam os afazeres que a si impunha, e decerto aquela questão já teria coberto o seu corpo frágil por inteiro.

Os dias e anos foram passando, e a menina cresceu sob uma presença discreta, vivendo por entre a brandura do amor, mas sentindo sempre que, ao longe, aquela e outras perguntas se acumulavam, rindo, como uma populaça que observa, sem cessar e com sarcasmo, todos os seus dias.

Até que um desses dias, na mira dos olhos alheios, prestes a ser mãe e sem resposta à dúvida agreste, se perguntava, agora, se teria saído mesmo da infância ou se permanecia, ainda, presa a ela.

Elsa Alves

* A partir de «Algumas proposições com crianças», de Ruy Belo.

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