Londres. Paragem de autocarros. Noite.

Londres e paragens de autocarros

Anoitecia cedo em Londres no mês de Janeiro.

Tinha vagueado pelas ruas do centro da capital, em redor de Piccaddilly Circus, depois de um dia de trabalho, e preparava-me para voltar a casa. Os cartazes com publicidades coloridas ofereciam-me a luz necessária para me refugiar na leitura, enquanto esperava o autocarro que me levaria de regresso ao local que me concedia o conforto de lar  ainda que provisório.

Nas minhas mãos, a vida triste de Esther Greenwoodrevelava-se, ao mesmo tempo que trazia reflexos da vida da autora. Era uma tristeza que eu não partilhava, mas pela qual inevitavelmente sentia algum tipo de identificação. Algumas passagens remetiam-me à própria solidão que eu sentia  e que se tornaria maior com o ano ao qual eu tinha acabado de dar as boas-vindas.

Foi nesse compasso de espera, embrenhado pelas palavras de Sylvia Plath, com a forma da voz de Esther, que uma outra voz me transportou para lá do universo d’A Campânula de Vidro.

Dei pela presença de dois jovens. O rapaz mantinha a distância  à qual não era, ainda, obrigado. A rapariga aproximou-se e, num sotaque que não denunciava quaisquer vestígios de outra língua que não o inglês, perguntou-me se tinha lume.

Marquei a página do livro e fechei-o, deixando acidentalmente a capa com o título virada para a figura que me tinha interpelado, enquanto vasculhava os bolsos, na esperança de poder ajudar.

   É um livro fantástico  disse-me.

   Sim – concordei.  É triste, contudo.

A história da autora perseguia-me desde o dia anterior. Tinha voltado do local que a tinha visto morrer, sem o saber, depois de um longo passeio. E, ainda sem o saber, no final desse dia, tinha tirado o livro da estante onde se encontrava há já algum tempo. Foi ao ler anotações sobre a autora, envolvido no livro, que descobrira o seu desfecho e a relação com a depressão. A ideia de ter estado no preciso local em que ela tinha decidido acabar com a sua vida, no mesmo dia em que tinha decidido ler o seu livroajudava-me a sentir que os laços entre mim e a obra se estreitavam.

Entreguei-lhe o isqueiro.

 O quê?  perguntou-me a rapariga, enquanto acendia um cigarro com o objeto que eu lhe fizera chegar às mãos.

 A doença. E a forma como acabou.

  A rapariga encolheu os ombros.

 Talvez.  Deu um bafo no cigarro.  Mas não fosse isso, não teria o mesmo valor. É um dos meus cult classics preferidos.

Não respondi. O isqueiro voltara-me para as mãos sem que desse por isso. A transação tinha sido concretizada, com sucesso, mas era a conversa de circunstância  que poderia ter sido facilmente evitada  que me consumia.

 Uma boa noite para ti  disse-me.

Agradeci. Desejei uma boa noite de volta. O rapaz, que tinha ficado alguns passos atrás, fez um breve aceno com a cabeça que quase me passou despercebido. Antes de me virar as costas, a rapariga fez-me um sorriso árido, que eu devolvi com um gesto atrapalhado que não chegava a ser sequer de simpatia.

Observei-os afastarem-se, alheios.

Reflecti sobre a relação entre arte e depressão. A jovem demonstrara que tinha Sylvia Plath num grande pedestal. Porém, respeitar o artista neste caso trazia um sabor amargo, pois implicava a falta de empatia para com a pessoa que lhe dava vida. Como se a responsabilidade dela fosse apenas a de entregar o melhor de si ao público, mesmo que isso a levasse ao ato desesperante de colocar a cabeça num fogão a gás.

E, enquanto subia para o autocarro de forma tão mecânica que nem me dera oportunidade de notar a sua chegada, não eram as palavras da jovem que me ecoavam na cabeça. Eram três versos de Lady Lazarus, um poema de Plath, às quais eu procurava dar significado:

Dying
Is an art, like everything else.
I do it exceptionally well.


Miguel Serra

Comentários

Anónimo disse…
Excelente estreia!!!
Anónimo disse…
Adorei!
Anónimo disse…
eloquente

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