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Mensagens

A mostrar mensagens de março, 2020

A sesta

Ilustração de Maria Monteiro Tomou-os de assalto. Nem as mãos de um mágico segurando, de súbito, um pomo branco igualariam a habilidade daquele sono que sorveu, repentinamente, pai, mãe e filho.   Respiravam,  dormiam em uníssono. Parecia quase que fingiam para se tornarem dignos de descrição. Três moscas que por ali voavam esperneavam pontualmente e comentavam o sono da família. Nunca antes haviam presenciado uma sesta tão peculiar que as distraísse da sua leviandade e do seu inerente sentido de fuga.  As três ouviam a respiração dos três adormecidos, que era uma só; pasmavam perante a expressão de abnegação dos três corpos despojados de gestos. A janela da sala onde dormiam estava aberta, convidando uma aragem a espaçar os pêlos dos três narizinhos. O do pai era um nariz acabrunhado; o do filho, um nariz súbito, novíssimo. A mãe tinha um nariz retraído, de modos delicados — mas igualmente reles por dentro, e por vezes ressonava até. Uma das moscas quis a...

Melhor e mais bem

Melhor ou mais bem? Pois é, tiremos notas! «Ser melhor formado» ou «ser mais bem formado», «estar melhor preparado» ou «estar mais bem preparado»? Pois é, a dúvida entre melhor ou mais bem não é de agora e pior do que dar um erro assim — digamos, momentâneo — num contexto como os de cima, é nunca identificar o problema nem sentir qualquer hesitação sobre qual das hipóteses escolher. Mas, hoje, a Escrivaninha tem uma boa notícia para os nossos leitores: não, a escolha entre melhor ou mais bem não é (nem nunca foi) aleatória e pode – claro! – ser aprendida! E em tempos de isolamento social como os que vivemos, está mais do que na altura de resolvermos esta dúvida para que ela não mais pulule nos textos que por aí escrevemos. E afinal de contas, qual é a diferença entre usar melhor ou mais bem? Antes de mais, melhor e mais bem são ambos graus comparativos – e nisso ninguém tem dúvida.  Contudo, não são graus comparativos da mesma palavra, pelo que não podem ser ...

Lembrando o café Luanda

Café Luanda | Fonte: Zomato Um dos meus cafés favoritos em Lisboa foi, em tempos, o café Luanda na Avenida de Roma. Tinha — como sabia quem o frequentava na altura — um rol de clientes habituais. Ainda que não na mesma faixa etária, lá estava entre as numerosas personagens que podiam pertencer a um romance: uma senhora velha, cujo nome não se sabia, mas a quem os empregados chamavam “a madrinha”; o coronel, cujo semblante fazia jus ao título; o engraxador que coxeava e comia os bolos que, ao fim do dia, sobravam; a senhora com os muitos tiques que não controlava, corrompendo a discrição que certamente gostaria de ter. O Luanda tinha a mais bela esplanada da avenida, com candeeiros esféricos, plantas em redor e muita luz. Havia ainda um pequeno quiosque anexado ao café – os donos eram, aliás, os mesmos — e era notório o sucesso da venda das raspadinhas, cujos despojos as pessoas deixavam no chão. Mas aquilo de que mais gostava no Luanda era um empregado memorável, que lembra...

Um Objecto Cortante, de Alexandra Maia

O 2º livro de poesia de Alexandra Maia Um Objecto Cortante, de Alexandra Maia , caiu-me nas mãos há uns meses e veio, sem dúvida, deixar marcas. Mas antes de auscultarmos o livro de hoje, não posso deixar de referir um outro, que ao primeiro me fez chegar, da autoria do poeta e crítico literário António Carlos Cortez: Poética com Dicção .  Com edição da Jaguatirica e da Gato Bravo, este volume conta com uma série de ensaios sobre poetas brasileiros, no qual se inclui precisamente uma acurada reflexão sobre Um Objecto Cortante de Maia — que, aliás, norteia este texto. O primeiro livro da autora, Coração na Boca , foi publicado pela editora Sette Letras, em 1999. Vinte anos depois, é pela editora Gato Bravo que a Portugal   chega Um Objeto Cortante que faz jus ao título. Afinal, esta é uma obra que fere pelos poemas afiados, incisivos como uma agulha que nos atravessa o peito e espicaça a dúvida, a dor mais profundamente acomodada. Obriga a uma espécie ...

(As)soprar velas por seis meses de Escrivaninha!

Seis meses de Escrivaninha | Fonte: Unsplash Dia 15 de Março de 2020 e a Escrivaninha faz seis meses! Pois é, não esperávamos celebrar os primeiros seis meses de parceria e blogue cada uma em sua casa. Aliás, noutra circunstância qualquer, provavelmente escolheríamos jantar fora e, quem sabe, comprar um queque (já que o bolo deve ficar para quando comemorarmos um ano!). Contudo, a responsabilidade social fala mais alto e, hoje (como nos próximos dias), ficaremos em casa. É tudo quanto está ao nosso alcance no combate ao Covid-19, o vírus que está a deixar o mundo em contingência e alerta. Mas para que nem nós, nem os nossos leitores se aborreçam durante as difíceis semanas que se avizinham, a Escrivaninha continuará a alimentar o seu blogue que – novidade –, hoje é lançado neste novo formato! Mas, afinal de contas, o que vos trazemos n'o pavio da vela de hoje? Em dia de aniversário – e mesmo que o isolamento social não permita que façamos uma festa – tod...

Regras para um bom texto

Se estruturar um texto pode, para muitos, parecer tarefa fácil, para outros tantos, criar o esqueleto que irá suster o nosso discurso e, posteriormente, tecer a rede discursiva é uma autêntica dor de cabeça. Pois bem, para impedir que o vosso texto se transforme numa estrutura pouco consistente e pouco organizada e, consequentemente, para evitar que as vossas ideias não sejam expressas da forma mais clara, hoje partilhamos convosco algumas regras básicas que garantirão o rigor dos vossos textos. Vamos, então, conhecê-las e, preferencialmente, guardá-las numa suite presidencial da nossa memória, pode ser? Regras para escrever um bom texto: 1.ª  Saber exatamente que tipo de texto que vamos escrever e ter em conta o público a quem ele se destina. Qual é, afinal, o público-alvo, o leitor ideal a quem o meu texto se destina? A partir da resposta a esta questão, definiremos o tom e estilo da linguagem do nosso texto. 2.ª  Listar os tópicos importantes a referir e/ou ...

A lagarta de pedra II

Da muralha vê-se mais muralha | Pintura de  João Maria Ferreira II Eram 11h30 quando começámos a nossa caminhada em direção à muralha e 12h quando chegámos ao topo. Jinshanling é uma das várias zonas visitáveis da Grande Muralha da China, já na província de Hebei e a cerca de 125 quilómetros e a mais ou menos duas horas do centro de Pequim. Ir à muralha é algo imperdível e provavelmente difícil de repetir a não ser que se viva por estes lados do mundo. E tomando isso como um dado adquirido, nós resolvemos seguir a sugestão de uma das nossas mais recentes amizades e escolher uma visita guiada que fugisse a Badaling, a zona restaurada da muralha mais próxima de Pequim e, por isso, a mais turística. Dir-me-ão os cépticos que não parece possível (só porque, tanto quanto sei, é isso que os cépticos tendem a dizer sobre as coisas), mas a verdade é que o nosso grupo (reduzido a mais ou menos 12 pessoas neste ponto) era o único nesta zona da muralha e, acredite-se ou não, cruz...