A sesta


Ilustração de Maria Sarreira Monteiro
Ilustração de Maria Monteiro

Tomou-os de assalto aquele sono. Nem as mãos de um mágico segurando, de súbito, um pomo branco igualariam a habilidade daquele sono que sorveu, repentinamente, pai, mãe e filho. 

Respiravam,  dormiam em uníssono. Parecia quase que fingiam para se tornarem dignos de descrição.

Três moscas que por ali voavam esperneavam pontualmente e comentavam o sono da família. Nunca antes haviam presenciado uma sesta tão peculiar que as distraísse da sua leviandade e do seu inerente sentido de fuga. 

As três ouviam a respiração dos três adormecidos, que era uma só; pasmavam perante a expressão de abnegação dos três corpos despojados de gestos.

A janela da sala onde dormiam estava aberta, convidando uma aragem a espaçar os pêlos dos três narizinhos. O do pai era um nariz acabrunhado; o do filho, um nariz súbito, novíssimo. A mãe tinha um nariz retraído, de modos delicados — mas igualmente reles por dentro, e por vezes ressonava até.


Uma das moscas quis apreciar melhor e pousou junto às narinas da mãe. Espreitou. Considerou que o interior daquele nariz não condizia com a nobreza daquela mulher e daquela casa, onde ela, hoje, esquecendo ser mosca, sonhadora, se sentia um condor imperialista — estranhando amplamente essa sensação, para a qual não havia espaço no seu corpo escasso.


As outras duas moscas começaram também a sentir-se maiores e mais capazes. Pararam de súbito nos rostos do pai e do filho, movidas pela curiosidade de melhor notar aquelas feições. 

E as três começaram, estáticas, a olhar com mais pormenor do que até então a família que dormia ainda. Estavam embevecidas, num êxtase que as tomava e se espraiava muito para lá delas. 

Foi então que, num momento infeliz, escorregaram, sem quererem nem saberem, para o pensamento. A mosca maior sentiu-se pensando. Começavam as outras duas a estranhar também o que seria aquela voz que ressoava nas suas cabeças, ao mesmo tempo sendo e não sendo delas. Num momento solene, a mosca menor proferiu um juízo que muitos críticos aproveitariam para matéria de ensaio, seguindo-se um breve e reflexivo diálogo. Clareou a voz, pôs a pata quase transparente no peito, e disse, como de um púlpito:

— Se ser humano é ser-se assim... tão comovente e belo, à mercê de tudo, e ao mesmo tempo tão frágil, o que será ser mosca?
— Hum... boa questão. Também estou a pensar nisso... Porquê será?  E não me ocorre resposta nenhuma.
— Pois eu não sei nem quero saber. Só sei que me sinto inchada e lateja-me a cabeça... Que diabos!

Observar a família suscitara uma horrível vontade de reflectir. No entanto, alguma coisa, mais cedo ou mais tarde, retiraria pai, mãe e filho, daquele belo e tolo estado de sonho, que as atraía para a observação e questionamento.  

Seria só a força peremptória do acaso a acordá-los se não o tivessem feito as três moscas, que, voluntariamente, numa categórica vontade de não mais pensar, voejaram e picaram os três, fartas do silêncio e do seu novo perfil meditativo, com que a contemplação da sesta, naquele dia, as dotara.

A família acordou então, desfazendo-se o encanto e beleza daquele quadro que despertara nas três moscas aquilo, aquele não sei quê que mói; aquele 
sentido estético e analítico tortuoso? — que, ufa!, felizmente, logo se esvaiu com o estalo seco do pai, que espalmou as três juntas — repondo-se a ordem das coisas que durante a sesta, momentaneamente, se invertera. 


Elsa Alves

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