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Lembrando o café Luanda



O café Luanda na avenida de roma
Café Luanda | Fonte: Zomato


Um dos meus cafés favoritos em Lisboa foi, em tempos, o café Luanda na Avenida de Roma. Tinha — como sabia quem o frequentava na altura — um rol de clientes habituais.

Ainda que não na mesma faixa etária, lá estava entre as numerosas personagens que podiam pertencer a um romance: uma senhora velha, cujo nome não se sabia, mas a quem os empregados chamavam “a madrinha”; o coronel, cujo semblante fazia jus ao título; o engraxador que coxeava e comia os bolos que, ao fim do dia, sobravam; a senhora com os muitos tiques que não controlava, corrompendo a discrição que certamente gostaria de ter.

O Luanda tinha a mais bela esplanada da avenida, com candeeiros esféricos, plantas em redor e muita luz. Havia ainda um pequeno quiosque anexado ao café – os donos eram, aliás, os mesmos — e era notório o sucesso da venda das raspadinhas, cujos despojos as pessoas deixavam no chão.

Mas aquilo de que mais gostava no Luanda era um empregado memorável, que lembrava um artista circense. Surpreendia-me vê-lo, com método e técnica, a transformar qualquer tarefa numa habilidade. Por exemplo, empilhava uma quantidade admirável de guardanapos, célere e com concisão cirúrgica.

A destreza com que puxava as toalhas brancas das mesas com gestos que conjugavam a perícia do mágico e os movimentos encantatórios do toureiro; o modo hábil e rápido como, de seguida, as dobrava e arrumava... tudo equivalia a um verdadeiro espetáculo, a que ele próprio punha termo quando chega a vez de desfazer a esplanada.

Ficava a observá-lo até chegar a minha vez de esvanecer com o cenário, deixando a ficção Luanda sem existir pela noite dentro, entregue ao descanso de um livro fechado.

Agora, em tempos de isolamento, as saudades do Luanda fazem-se sentir. Para quando um café aqui ou noutro lugar?


Elsa Alves






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