O Furacão Bong Joon Ho
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Ilustração de João Maria Ferreira |
A madrugada do passado dia 10 trouxe-nos um dos eventos mais esperados do ano: a 92.ª edição dos “Academy Awards”, mais conhecidos por Óscares — um tributo ao nome da pequena estatueta dourada que se veio a tornar o solteiro mais cobiçado de Los Angeles. A cerimónia, destinada a celebrar a excelência no cinema, durou cerca de 3:30 horas e optou por prosseguir sem qualquer apresentador depois do autoproclamado “sucesso” da edição de 2019.
Ainda assim, não faltaram momentos de humor ao longo do evento, que também nos presenteou com os habituais (e emotivos) discursos de aceitação (veja-se por exemplo os discursos de Laura Dern ou Hildur Gudnadottir). Houve também espaço para a habitual controvérsia, já que 19 dos 20 nomeados para as categorias de atuação eram brancos e na lista dos nomeados para melhor director não figurava qualquer mulher — facto bastante abordado ao longo da cerimónia e preceito suficiente para reacender a conversa sobre a diversidade e maior representação em Hollywood. Mas passemos ao que interessa: a análise dos momentos mais marcantes da maior noite do ecrã dourado.
No fundo, toda esta noite de Óscares poderia ser resumida em três palavras: Bong Joon Ho. O realizador Sul Coreano e o seu fantástico Parasite foram os grandes vencedores da noite, levando para casa quatro estatuetas, incluindo a de Melhor Filme. A esta juntaram-se os Óscares para Melhor Realizador, Melhor Filme Internacional e Melhor Argumento Original. Estas vitórias tiveram particular expressão, já que este é o primeiro filme em língua estrangeira a levar para casa a estatueta principal e o primeiro filme Coreano a ser nomeado para qualquer uma destas categorias. A grande antecipação é que esta vitória possa finalmente abrir as portas dos Óscares ao cinema internacional, fazendo derrubar o ‘Muro de Berlim’ que são as legendas (para os americanos, claro) e tornando os Óscares num evento verdadeiramente mundial.
Mas vale a pena reflectir um pouco mais sobre esta vitória de Parasite: o filme acabou mesmo por ser a surpresa da noite, ultrapassando 1917 (de Sam Mendes), que era visto como o favorito para arrecadar o prémio de Melhor Filme. De facto, esta foi uma ‘ruptura’ para com o cânone da Academia, que tem tendência para premiar projectos como 1917: um filme de proporções épicas sobre a Primeira Guerra Mundial, permeado, no entanto, por uma mensagem anticonflito e que teve uma recepção positiva quer da parte dos críticos quer da audiência. Além disso, este filme beneficiava ainda de uma edição e qualidade técnica que o tornava numa experiência imperdível e que serviam eficazmente o seu incómodo (mas sensacional) fim.
Mas vale a pena reflectir um pouco mais sobre esta vitória de Parasite: o filme acabou mesmo por ser a surpresa da noite, ultrapassando 1917 (de Sam Mendes), que era visto como o favorito para arrecadar o prémio de Melhor Filme. De facto, esta foi uma ‘ruptura’ para com o cânone da Academia, que tem tendência para premiar projectos como 1917: um filme de proporções épicas sobre a Primeira Guerra Mundial, permeado, no entanto, por uma mensagem anticonflito e que teve uma recepção positiva quer da parte dos críticos quer da audiência. Além disso, este filme beneficiava ainda de uma edição e qualidade técnica que o tornava numa experiência imperdível e que serviam eficazmente o seu incómodo (mas sensacional) fim.
No entanto, o filme vencedor tem um ADN muito diferente. Parasite é uma sátira acutilante das dinâmicas familiares e diferenças de classe social na Coreia do Sul, que navega majestosamente as expectativas dos espectadores e que, através de diversos tons narrativos, nos traz uma história trágica e cómica em igual medida — um fenómeno que seria impossível sem a arte de Bong Joon Ho na realização. É também, na minha modesta opinião, um dos raros casos em que o melhor filme acaba mesmo por triunfar, derrotando as expectativas criadas pelas cerimónias de entrega de prémios que antecedem aos Óscares.
Mas de onde vem esta vitória? A própria Academia é uma das responsáveis: a recente expansão do número (e diversidade) dos votantes dos Óscares tem vindo a revelar escolhas mais interessantes (veja-se, por exemplo, a excelente selecção da edição de 2018), além de que o sistema de voto preferencial da cerimónia produz resultados (em geral) mais justos e abrangentes.
No entanto, esta decisão parece, acima de tudo, vincar a intenção da Academia em premiar filmes como Parasite: um estilo de cinema de autor mordaz e ressonante, que traz à cerimónia uma nova perspectiva do que outras sociedades podem trazer para os “Academy Awards”. É sem dúvida um momento decisivo para os Óscares, tornado ainda mais significativo com o discurso de Bong Joon Ho, que aceita o Óscar de Melhor Realizador fazendo uma tocante homenagem a Martin Scorcese e às suas palavras “The most personal is the most creative” — um dos momentos mais espetaculares da noite e que reafirma a ideia de que o cinema é um fenómeno global.
Mas de onde vem esta vitória? A própria Academia é uma das responsáveis: a recente expansão do número (e diversidade) dos votantes dos Óscares tem vindo a revelar escolhas mais interessantes (veja-se, por exemplo, a excelente selecção da edição de 2018), além de que o sistema de voto preferencial da cerimónia produz resultados (em geral) mais justos e abrangentes.
No entanto, esta decisão parece, acima de tudo, vincar a intenção da Academia em premiar filmes como Parasite: um estilo de cinema de autor mordaz e ressonante, que traz à cerimónia uma nova perspectiva do que outras sociedades podem trazer para os “Academy Awards”. É sem dúvida um momento decisivo para os Óscares, tornado ainda mais significativo com o discurso de Bong Joon Ho, que aceita o Óscar de Melhor Realizador fazendo uma tocante homenagem a Martin Scorcese e às suas palavras “The most personal is the most creative” — um dos momentos mais espetaculares da noite e que reafirma a ideia de que o cinema é um fenómeno global.
O resto da noite foi surpreendentemente expectável. De facto, consumou-se a maioria das previsões para as restantes categorias, sendo que alguém que tivesse seguido a award season (ou as probabilidades das casas de aposta de Las Vegas) podia ter feito uma agradável sesta até às últimas categorias sem grande peso na consciência. Os discursos também não foram particularmente redentores. A expectativa quanto às palavras de Brad Pitt (a receber o seu primeiro Óscar por atuação e que nos deliciou com os seus discursos nos Golden Globes, BAFTAs e SAGs) ou de Taika Waititi (vencedor do Óscar de Melhor Argumento Adaptado) foi rapidamente contrariada quer pela falta de humor, quer pelo excesso de nervos. O discurso mais emblemático da noite veio mesmo da boca de Joaquin Phoenix quando recebeu a estatueta de Melhor Actor — uma apresentação articulada da virtude das segundas oportunidades, da luta contra a injustiça e da denúncia da desconexão do Homem com “o mundo natural”. O discurso assumidamente vegan pecou, no entanto, por ser um pouco disperso e teria sido menos marcante se não fosse a final e bonita homenagem ao seu irmão River Phoenix , essa alma talentosa que nos deixou cedo demais.
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Ilustração de João Maria Ferreira |
Quanto às derrotas da noite, essas foram muitas, já que o domínio de Parasite reduziu todos os outros a derrotados. O destaque, contudo, vai para The Irishman, de Martin Scorsese, que apesar das dez nomeações voltou para casa sem qualquer estatueta. Esta foi também a confirmação de que ainda não é este o ano da Netflix — que apesar do número impressionante de projectos nomeados (era o estúdio mais presente, com 24 nomeações) só levou para casa os Óscares de Melhor Actriz Secundária (Laura Dern — Marriage Story) e Melhor Documentário (American Factory). Apesar do saldo negativo em comparação com a última edição (15 nomeações e quatro prémios), é justo afirmar que a manifesta aposta na qualidade dos seus projectos deve trazer dividendos à revolucionária produtora num futuro muito próximo.
O entretenimento da noite ficou a cargo dos candidatos ao Óscar de Melhor Canção Original, que apresentaram ao vivo os temas em competição. No fim, foi Elton John que levou o galardão para casa com o seu “(I’m Gonna) Love me again” do filme Rocketman, mas durante o espectáculo foi difícil não sentir que tanto ele quanto o lendário Randy Newman (Toy Story 4) estavam deslocados das power ballads trazidas pelas outras concorrentes. Mas ainda mais fora de sítio foi a atuação de Eminem — sem dúvida o momento mais surreal e inesperado dos Óscares. Porquê, Eminem? O facto de teres lançado um novo álbum justifica interpretares uma canção com 18 anos (“Lose Yourself” — ela própria premiada com um Óscar em 2003)? Juro que não percebo. A recepção do público foi, no entanto, bastante positiva (com algumas notáveis excepções) e depois da cerimónia a música voltou mesmo ao topo dos actuais charts do iTunes. Billie Eilish, que interpretou o tema “Yesterday”, dos Beatles, durante o “in Memoriam”, seria uma escolha mais óbvia e contemporânea para a cerimónia, mas terá de aguardar uma próxima oportunidade (talvez na próxima edição dos Óscares, já que a jovem cantora criará e interpretará a música para o próximo filme da saga de James Bond, que chega a Portugal em Abril deste ano).
Quanto à ‘condução’ do evento, foi relativamente razoável. O número musical inicial, trazido por Janelle Monáe e Billy Porter, foi bem sucedido, ao contrário do monólogo de abertura de Steve Martin e Chris Rock que pecou por ser seguro e pouco original. Devo admitir que sou um fã deste formato sem apresentador, mas sinto que há imensa margem para melhorar: apresentadores que anunciam outros apresentadores que apresentam montagens para depois mencionarem os nomeados de cada categoria parece-me um sistema altamente redundante para uma cerimónia desesperada em cortar no seu tempo de transmissão (especialmente quando tem uma voz off capaz de agilizar o processo). No entanto, este formato possibilita que várias pessoas mostrem trabalho, e neste caso é preciso destacar as duplas de Kristen Wiig e Maya Rudolph ou Will Ferrell e Julia Lois-Dreyfus. A decisão de mudar a ordem de atribuição dos prémios foi também apreciada, se bem que a cerimónia acabou por, inevitavelmente, perder ritmo a partir do 2.º terço.
Por fim, quero também deixar uma mensagem de apreço à transmissão portuguesa desta edição dos Óscares, que uma vez mais pertenceu à FOX. Apesar de implicar a necessidade de TV por cabo, aplaudo a ideia de transmitir duas versões da cerimónia — uma com comentário português, em directo, na FOX, e outra sem ele, na FOX Movies — , o que acomoda formas diferentes de ver a cerimónia.
Feitas as contas, a 92.ª edição dos “Academy Awards” foi um evento marcado pela vitória histórica de um realizador que nos trouxe o melhor filme do ano de fora das fronteiras americanas. Só podemos esperar que o furacão que deu vida a estes Óscares seja apenas o prenúncio de uma nova década de reconhecimento do melhor cinema mundial.
Texto: José Manuel Sousa
Revisão: Escrivaninha
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