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A lagarta de pedra I

Muralha da China
Da muralha vê-se mais muralha | Pintura de João Maria Ferreira

I
Eram 6h40 quando chegámos à recepção do hotel, encasacados até ao tutano e passeando dois copos de café improvisados. O motorista já nos esperava e, abordou-nos sem hesitar e, para variar, sem dizer uma palavra em Inglês. Aqui a pontualidade é absolutamente crucial e, embora os portugueses não sejam conhecidos por serem os mais pontuais, nós até temos o hábito de nos portar muito bem nestas situações.
Com as mochilas carregadas de bolachas, fruta e alguma água, acabámos por, quase uma hora depois, ser encaminhados para um autocarro onde nos esperavam — a nós e aos restantes turistas coletados pela moribunda carrinha do primeiro motorista — mais uns quantos ocidentais, todos eles muito diferentes entre si e, à primeira vista, todos eles demasiado reservados para o meu gosto.
Nevara durante toda a noite e as ruas de Pequim estavam cobertas de frio. No centro da cidade, grande parte da neve já tinha sido cuidadosamente amontoada por pessoas que — supus — estavam encarregadas da limpeza das ruas. Aqui, todos estão empregados e todos têm pelo menos uma tarefa a seu cargo, seja ela gerir a contabilidade de uma empresa de renome, recolher lixo da rua, limpar a neve dos passeios e estradas ou guardar uma porta. Tudo vale e, consequentemente, há poucos sem-abrigo.
Àquela hora, grande parte da neve das ruas de Pequim estava colhida ou em vias de o ser. O mesmo já não se podia dizer dos ‘subúrbios’, embora seja difícil falar de subúrbios numa cidade como Pequim, especialmente se não se conhecer bem os seus limites e distâncias, que nós, estrangeiros, tendemos a medir por estações de metro ou quilómetros de táxi. Aí, como nas zonas de vegetação que contornam e percorrem os magnânimos edifícios de uma das cidades mais populosas do mundo, a neve aguardava.
O autocarro seguiu lentamente, fazendo caminho pelo trânsito e, mais tarde, percorrendo as estradas da montanha. A paisagem tingida de branco e preto parecia fazer parte de um livro de banda desenhada que eu nunca teria lido se não tivesse estado ali. Não admirava que o desenho e a caligrafia fossem tão profícuos naquelas terras de oriente: com paisagens daquelas compreende-se quem procura honrar o pincel mergulhado em tinta-da-china. Contudo, sorte para os que julguem que a paisagem é boa parte do trabalho! Agora que estava diante daquelas imagens podia, finalmente, perceber o que me havia sido explicado em Xi’an: a mestria da caligrafia chinesa está não só em saber fazer mais do que um traço numa só pincelada. Está também, e sobretudo, em pintar sobre o branco e conferir movimento e textura a esse fundo nunca pintado.
Eram 11h da manhã e já lá iam cinco horas desde que acordáramos. A neve, que nos maravilhava a nós, turistas, dificultava o andamento da visita guiada e, claro, a vida das aldeias locais pelas quais íamos passando.
Durante uma hora fui folheando as páginas da Lingshan que trouxera comigo no Kindle. Com excepção dos guias em papel que sempre carreguei para todo o lado, com o Kindle e outros dispositivos semelhantes sempre me sentira uma turista relativamente tecnológica. Até passar, claro, vinte dias na China.
O grupo era bastante eclético, embora maioritariamente constituído por ocidentais. Um casal de irlandeses simpáticos que, tanto quanto percebemos, estava há seis meses em viagem, mas, para mal dos nossos pecados, era vegetariano. Um escocês em nada escocês que, além de falar pelos cotovelos sobre si, vivia na Coreia do Sul há cinco anos, pelo que falava sobre si única e exclusivamente nesse contexto. Já ao nosso lado, no autocarro, vinha um casal de britânicos que, como quase todos os britânicos, se destacavam por falar muito depressa, com um sotaque carregado e, acima de tudo, por parecerem ser, indeed, britânicos.
Havia também um chinês muito magro que, fazendo jus ao misterioso casaco de matrix que envergava, se manteve sempre escondido debaixo do seu cachecol largo de um cinzento pouco vistoso, sem proferir uma palavra aos não falantes de mandarim, durante toda a visita. Entre nós contava-se ainda uma alemã solitária, de Köln, que passou todo o tempo preocupada com a hora de regresso, dado que tinha de estar no aeroporto de Pequim num qualquer horário apertado, e um casal oriundo dos Alpes que não parecera muito simpático até ao momento em que ela percebera que um de nós falava — relativamente bem — francês.
Depois, e como em todas as visitas guiadas, havia um grupo de pelo menos cinco pessoas que, misteriosamente, nos acompanhou durante o trajecto até Jinshanling, mas, uma vez iniciada a subida, nunca mais fora visto. Teriam escolhido um caminho diferente do nosso ou, mais estranho ainda, optado por não o fazer? Escolhemos não nos preocupar com o assunto, uma vez que a pesada ressaca de que evidentemente sofriam só dificultaria o percurso.
Fosse como fosse, a lista não podia terminar sem a dupla de belgas — pai e filho — , o grande alvo de discriminação positiva por parte do nosso animado guia, constantemente preocupado com a saúde do senhor de 60 e poucos anos que estava perfeitamente capaz de levar a experiência a cabo. Além disso, a subida não teria tido a mesma graça sem o rapaz de Xangai que julgou que o Zé era chinês e morreu de medo de fazer a caminhada, afastando-se do grupo diversas vezes só para que o guia fosse obrigado a voltar atrás para o resgatar do pânico que o impedia de avançar.
«My dear friends, there is no romantic encounters on the Wall», dizia Chen, cuspindo animadamente para o microfone e fazendo os turistas rir da sua falta de jeito e inglês macarrónico. Era um tipo baixinho e praticamente imberbe, sempre sorridente e apressado, que dizia ter aprendido inglês com o filme Forrest Gump, o que servia de desculpa para a sua pouca proficiência linguística, mas explicava algumas semelhanças notórias com a dita personagem.
Marta Cruz

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