A Louca da Casa, a de Montero e a nossa
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A Louca da Casa, Rosa Montero |
Não vos apresento Rosa Montero pelo simples facto de que não estou certa de que possa fazer jus aos vários dotes da autora e, sobretudo, porque sei que não o posso fazer sem falhar redondamente. Então, digamos apenas que Rosa Montero é uma romancista e jornalista espanhola (e a ordem não é aleatória), nascida em 1951, numa Madrid em que eu nunca hei-de estar (curioso que possamos falar assim sobre todos os sítios do mundo).
Entre a não pouco extensa obra da autora, vive um livro que persegui – e temi ler – durante anos e que hoje tento recomendar com toda a sinceridade e falta de jeito que me caracterizam, pedindo desde logo desculpa por tudo quanto eu possa revelar a respeito deste livro ser, inevitavelmente, redutor. A verdade é que a minha mestria não me permite fazer melhor, embora saiba que a mais não sou obrigada.
A Louca da Casa é um livro que, antes de mais, é difícil de rotular por uma simples razão: é um ensaio ficcional autobiográfico com toda a mixórdia de características que um género híbrido implica (e que, claro, vai sempre ser alvo de tentativas de catalogação limitativas como a que eu própria aqui desenho). Nele, Rosa Montero acompanha-nos numa viagem sobre três coisas sem as quais quase nenhum de nós vive (de forma mais ou menos proeminente) e que, para todos os efeitos, são os ingredientes comuns a todos os livros (e a todas as vidas): a imaginação, a escrita e a loucura.
Ora, A Louca da Casa é, segundo Montero, a nossa imaginação e tudo quanto a ela da azo ou dela advém. É uma doida que ocupa a nossa cabeça, numa loucura embriagada que oscila entre andar caladinha (que é como quem diz que fala, mas baixinho) e entre descer do sótão com uma vontade louca de tomar conta dos nossos quotidianos para lhes dar aquilo de que eles mais precisam: ensejo e falta de monotonia!
Mas é claro que isso pode não vir sem prejuízo para quem escreve... E diz Montero — a personagem, a jornalista ou a romancista (pouco importa) — que: «(...) isso acontece quando o que se escreve começa a fazer parte do delírio; quando a louca da casa, em vez de ser uma inquilina alojada no nosso cérebro, se transforma no edifício inteiro e o escritor, num prisioneiro dentro dele» (p.150). Foi o caso de Rimbaud, entre tantos outros.
Mas o certo é que «a realidade não é objectiva», e volto a citar Montero – a personagem, a jornalista ou a romancista —, «não é mais do que uma tradução redutora da imensidão do mundo e o louco é aquele que não se adapta a essa linguagem.» (p.155). Não é possível discordar.
Dito de outra forma:
«É que os humanos não são apenas mais pequenos do que os seus sonhos, são também mais pequenos do que as suas alucinações. A imaginação desgovernada é como um raio na noite: queima, mas ilumina o mundo. Enquanto dura esse clarão deslumbrante, tentamos espreitar a totalidade, aquilo a que alguns chamam Deus e que para mim é uma baleia coberta de crustáceos. No fim de contas, talvez Rimbaud não delirasse tanto quanto aspirava fundir-se com o divino. Na pequena noite da vida humana, a louca da casa acende velas.» (p.159)
É assim, numa espécie de estufado daqueles que cozinham a lume brando uma infinidade de ingredientes que só juntos funcionam, n'A Louca da Casa, Montero mostra-nos como escrever é um acto engenhoso (e não cândido), que carece de se deixar descer do sótão essa tal louca imaginação. Daí resulta esta análise bem-humorada de uma série de biografias de outros, misturada com uma autobiografia 'arromançada' que em tudo vem provar o quão nós precisamos de tudo quanto inventamos. Mais ainda se quisermos ganhar algum calo no escrita.
Ou seja, A Louca da Casa é um livro sobre quem lê, sobre quem escreve, sobre o que dizem os que escrevem, sobre essa audácia que é deixar a louca da casa tomar-lhes o punho e, inevitavelmente, sobre a verdade e a mentira.
De resto, sendo a confirmação de que uma vida sem imaginação serve de pouco, resta-me apenas dizer que A Louca da Casa é um livro que guarda algumas surpresas que testemunham a perícia necessária para se escrever ficção – e fazer crer a quem lê que tudo quanto se escreve é de fiar.
Acreditem, pelo menos, que ler este livro é um exercício que provocará alvoroço. Não é por acaso que recebeu o prémio Grinzane, nem que baptizou a categoria de devaneios literários do blogue da Escrivaninha.
Marta
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