O popular, o ridículo e o gracioso na dança clássica
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Les Ballets Trockadero de Monte Carlo. Foto de Glam Magazine |
Escrevo estas linhas humildemente, como ex-estudante de ballet clássico. Não sou teórica da dança, nem tenho a pretensão de ser — e tenho até muitas reservas quanto a essa figura. Recordo-me de ter lido, em tempos, um ensaio algo pastoso da autoria de um conhecido ‘teórico da dança’ que explorava a ideia de uma certa força criadora presente nela, com referências (pasme-se!) ao parto. Pareceu-me uma divagação acriteriosa sobre o assunto, um parlapié (como, de resto, o meu), mas de quem, ao contrário de mim, nunca se entregou a pliés, tendus, fondues ou adágios.
A verdade é que é ingrato tecer considerações sobre uma arte quem apesar de tão exigente em termos físicos, transparece um halo de delicadeza, roçando o etéreo. Afinal, dificilmente essas considerações dirão justamente daquilo que na dança clássica se vê e sente.
Parece-me que, por mais bem escrito e fluído que seja um texto sobre dança (seja ele ensaístico, seja um poema de perfeita métrica), dificilmente competirá com esta que considero ser uma arte não explicativa: dispensa a paráfrase, a explicação acessória. Se a literatura usa a linguagem para construir uma outra coisa — sugerir e criar um universo que está, parece-me, para lá dos seus próprios mecanismos de linguagem — a dança é ela mesmo uma linguagem, com a vantagem da universalidade que a caracteriza.
A par da dança, também a música se incluiria (e talvez mais unanimemente) nesse grupo de artes não explicativas que me parecem mais directamente ter um tácito acordo com a emoção e levar-nos mais facilmente àquele ponto de arrepio da pele — se não estivermos completamente embrutecidos e tivermos, ainda, alguma sensibilidade estética. Nesse caso, a dança ainda nos provocará qualquer coisa.
Admiração, comoção, embevecimento poderão ser algumas dessas sensações e talvez sejam precisamente aquelas que mais experimentamos quando assistimos a um bailado.
Mas, e quanto à vontade de rir? Será justificável? Considero que sim por reconhecer certo pendor popular, até ridículo, nos bailados clássicos, que é inevitavelmente cómico, podendo justificar a gargalhada indiscreta. Vejamos apenas alguns dos elementos que considero populares ou ridículos e porquê.
· A mímica narrativa que conta a história de bailados tradicionais como o Lago dos Cisnes, Quebra-Nozes, ou Dom Quixote deve ser óbvia, declarada — assim manda o libreto. Ora, os “não” e “sim” dos bailarinos devem ser sobejamente exagerados para que às pessoas da última fila chegue, pelo menos, um esgar dessa expressão. É lógico — democrático, afinal todos pagaram bilhete —, mas não deixa igualmente de ser ridículo, sobretudo se estivermos nas primeiras filas e virmos um pedido clemente, de mãos em oração, da parte do bailarino e a negação rasgada na boca da bailarina. Absolutamente teatral, tão óbvio que chega a ser infantil e, claro, a levar-nos a rir.
· As preparações, isto é, os momentos em que os bailarinos colocam os braços numa posição preparatória de modo a — passo a redundância — preparar uma sequência de passos. Estas preparações têm também um quê de ridículo pelo seu exagero, assim como a posição final depois de uma diagonal de pirouettes. É comum vermos bailarinas erguendo muitíssimo o queixo e, depois, terminando a sequência de movimentos esticando os dedos num movimento muito repentino e abrindo bem a boca, como se todo o corpo dissesse em voz alta um estridente “Voilá! Vejam como a diagonal me saiu na perfeição”. Trata-se de uma assunção declarada e despudorada do virtuosismo — e na qual, pessoalmente, também encontro alguma piada.
· O jogo de braços em arco e as formações complexas de grupo, presentes em certos bailados como em La Sylphide. Este jogo formado pelo corpo de baile lembra-me uma brincadeira de crianças; uma verdadeira confusão de corpos que, a bem da verdade, ou enfastia o público (ansioso pelas variações a solo) ou fá-lo rir.
· As prolongadas poses dos bailarinos do corpo de baile que devem ser mantidas por longos minutos, acompanhadas de um sorriso permanente — e inverosímil. Quem sorri durante tanto tempo? — enquanto, mais uma vez, os solistas dançam a sua variação ou pas-de-deux. Se, em certos momentos, os bailarinos gesticulam e fingem falar, reproduzindo o comportamento humano, noutros estão absolutamente estáticos, servindo de cenário, como se por momentos a alma se aquietasse. Não há grande verosimilhança narrativa nisto. Além de que é muito tempo estático quando na verdade estudaram uma vida inteira para, em palco, se poderem 'mexer'.
· O facto de na coda — a parte final e apoteótica do bailado de estrutura tradicional — se esperar que, a determinada altura, a bailarina execute 32 ou 48 (um múltiplo de 8, isto tem matemática) fouettés — pirouettes que implicam um movimento da perna, que deve abrir ao lado (em linguagem técnica em en dehors), antes de ser recolhida. É a quantidade que importa. Obviamente que esta é mais uma expressão do virtuosismo que não deixa de concentrar algo de popular: o objetivo de deixar a massa espectadora em êxtase! E há mesmo quem, durante essas pirouettes, bata palmas, pedindo mais, dando ritmo à música como se numa festa popular.
Todos estes aspetos mais cómicos, de cariz popular e/ou ridículo são muito bem identificados e explorados pelos Ballets Trockadero, a famosa companhia composta por homens que dançam em pontas e que satiriza, com arte, virtuosismo e inteligência, os mais variados bailados clássicos.
Por fim, quanto ao gracioso que incluí no título — por ser evidente e para me redimir — ele é constatado por quantos assistam a um clássico. (Já agora, sugiro La Bayadère ou Manon.) A graciosidade, expressividade e o domínio técnico de uma Aurélie Dupont, a minha bailarina de eleição, desculpam qualquer faceta popularucha desta que, apesar de tudo, se vê como uma arte sobranceira e elitista.
Resta-me deixar-vos um conselho: quando forem ver um bailado clássico tradicional, atentem no máximo possível. Poderão usufruir do espetáculo a um outro nível, talvez passar por um mais amplo espectro de emoções, e eventualmente rir sem culpa.
Elsa Alves
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