«Açorianidade» num podcast Bruá




«Uma espécie de embriaguez do isolamento impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quási religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água».
Isto publicava Vitorino Nemésio a 19 de Julho de 1932 — num número comemorativo do centenário dos descobrimento dos Açores da revista Insula — , quando frequentava a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, cidade onde já tinha concluído o liceu, dez anos antes. Sim, esta era a voz de um jovem estudante de 31 anos de, que viria a ser um dos grandes nomes do mundo literário português, que foi jornalista, conferencista, locutor de rádio e televisão, filólogo, poeta, ensaísta e escritor de ficção — enfim, um vasto produtor de papéis, desenhos, notas e rabiscos, como prova a extensão do seu espólio, hoje guardado pela Biblioteca Nacional.
Mas, voltando ao assunto, antes de ser tudo o que acabou por ser, Nemésio também foi jovem e, acima de tudo, foi açoriano. Ora, foi açoriano de tal forma que cunhou um termo ­ — hoje mítico, pelo menos para os ilhéus que nasceram ali no meio daquele Atlântico que tanta gente inveja e tão pouca gente entende — carregado de força literária e, acima de tudo, de força cultural: a açorianidade.
Entre datas importantes como a Revolta das Ilhas (a última revolta contra o Estado Novo que começou na ilha da Madeira e se alastrou, depois, para algumas das ilhas dos Açores) e o primeiro Estatuto dos Distritos Autónomos das Ilhas Adjacentes — um diploma que, em 1933, aprovava que a organização e administração das ilhas fossem «reguladas em lei especial» — , é disso que fala Nemésio em 1932, resolvendo deixar-se levar sobre o sentimento do ilhéu que está longe da ilha, cunhando o conceito de açorianidade ­e deixando na boca dos açorianos algumas frases cruas, hoje tantas vezes repetidas:
«A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento dos relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar. Mas este simbolismo está muito longo de aludir com clareza aos segredos do ser açoriano, e mais parece um entretenimento literário do que um sério propósito de pôr o problema da nossa alma. Um dia, se me puder fechar nas minhas quatro paredes da Terceira, sem obrigações para com o mundo e com a vida civil já cumprida, tentarei um ensaio sobre a minha açorianidade subjacente que o desterro afina e exacerba



Mas, afinal, o que é isto da açorianidade que só os açorianos têm presente, e que Nemésio quis deixar por aí para que todos pudessem saber que existia? Afinal de contas, o que é isso de um termo que serve de substrato cultural unificador, e que os ilhéus deste arquipélago sentem mesmo sem o saber definir?
Bruá podcasts também se interessou por este tema e, no episódio #5 do podcast Sapiens, foi perguntar a quem dele sabe melhor. Aliás, o Luís Francisco Sousa, juntou Cláudia Cardoso, ex-Secretária Regional da Educação no Governo Regional dos Açores, diretora da Biblioteca Municipal Luís da Silva Ribeiro e com um Mestrado dedicado a Nemésio, e Luiz Fagundes Duarte, ex-Diretor Regional da Cultura e Secretário Regional da Educação, Ciência e Cultura do Governo Regional dos Açores, filólogo que trabalha na obra de grandes autores da literatura portuguesa — Antero de Quental, Eça de Queirós, Fernando Pessoa e, claro, Vitorino Nemésio — e professor da Universidade Nova de Lisboa.
Confrontados com a indefinição e com o pouco informado emprego do conceito de açorianidade, mas de acordo quanto ao facto de nele se centrar uma noção terminológica, temporal e social, neste episódio de Sapiens foram ditas várias coisas interessantes que valem muito a pena ouvir, e de lápis na mão — à maneira de Nemésio.
Perdoem-me as paráfrases.
Luiz Fagundes Duarte fala em ‘afastamento’ físico e cultural à metrópole e insiste que o conceito de açorianidade deve ser visto de um único ponto de vista: o cultural. Cláudia Cardoso realça os contornos afetivos do artigo da Insula em que o termo é cunhado (artigo esse — com uma só página! — cuja leitura aconselhamos vivamente) e fala de uma ‘marca identitária’ de um povo que se sente mais marcado pela geografia do que propriamente pela história.
Depois, Luís Francisco Sousa, que orienta a conversa, questiona os interlocutores sobre o espaço que as tradições açorianas ocupam nesse termo, bem como sobre o valor político do mesmo. Daqui, parte-se para uma discussão das características de isolamento destas ilhas e para o poder literário do conceito. Contudo, com mais ou menos afinco, ambos os convidados reagem à má utilização política do conceito que, para eles, deve ser ignorada porque ‘os açorianos são açorianos independentemente de quem os governe: não é isso que os une’.
Eu, que também sou açoriana, não posso deixar de negar que este conceito é, para mim (e como foi, pelo menos inicialmente, para Nemésio), mais uma forma de sentir as tradições e a forma de vida do que qualquer outra coisa (porque de isolamento já não me atrevo a falar). Contudo, poderemos nós ignorar o facto de ter sido um termo tantas vezes utilizado a respeito da autonomia (política) da região? Talvez não. Aliás, quer Cláudia Cardoso, quer Luiz Fagundes Duarte acabam por dizê-lo, de uma forma ou de outra, quando reconhecem que o que há de unificador no termo há também de exclusivo — e, quer queiramos quer não, quando na cultura queremos unir e/ou excluir, as implicações nem sempre são exclusivamente culturais.
E tu, açoriano, continental? Conhecias o conceito? Se sim, como é que o sentes?
Lê o artigo de Nemésio e todos os outros conteúdos do número especial da revista Insula (1932) em:
http://104.155.66.60:8080/handle/123456789/2654
Ouve o podcast Sapiens dedicado à açorianidade em: https://www.bruapodcasts.com/sapiens



Ah, e já que ‘pegámos lume’ (à boa maneira açoriana) ao pavio da vela, aproveitemos para lembrar que o gentílico (uma palavra que designa a função de alguém em relação à sua origem) correto para falar da malta dos Açores é açoriano (ou açorenhos e açorenses) e não açoreano. Diz a regra que quando a base dos gentílicos (a que se acrescenta um sufixo) termina em <e> átono (o caso de Açores), ao sufixo -ano somos obrigados a acrescentar uma vogalzinha de ligação — o dito <i> que tão bem ouvimos — e fazer desaparecer o <e> átono e o <s> final. Por isso, nascem açorianos, e não açoreanos — o que, na verdade, até aos próprios açorianos custaria muito a dizer!
Não acreditas? Consulta o Dicionário de Gentílicos e Topónimos do Portal da Língua Portuguesa em: http://www.portaldalinguaportuguesa.org/recursos.html?action=gentilicos&act=list
Marta

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