O Marechal Piz Buin




Eram dez horas, mas o calor já apertava. Estava «uma tosta» — como dizia a menina nortenha que se sentara com a família, mesmo junto ao nosso posto de observação e cujo corpo redondo quase não cabia no seu fato de banho amarelo. Àquela hora a Meia Praia ainda não tinha muita gente, mas certamente que o espaço entre os coloridos chapéus-de-sol diminuiria em breve, já que o sol brilhava com intensidade, o vento não soprava com demasiada força e a manhã prometia ser, no mínimo, radiante.
Nós, éramos três — o que tornava o acampamento fácil de montar. Por isso, foi com rapidez e perícia que deixámos tudo no lugar e caminhámos lentamente para a beirinha da água. Naquele dia, as ondas rebentavam com uma firmeza delicada, um pouco antes dos tornozelos dos velhotes e dos joelhinhos das crianças que ali se acumulavam, ultrapassando, sem dificuldade, a zona de rebentação para aquela zona calma onde já todos nadavam sem dificuldade.
Nadámos também nós — pelo menos dois de nós — e saímos só quando o frio nos fez tiritar e quando os pulmões, já cansados, mandaram dizer à cabeça que nenhum de nós tencionava ficar esbaforido dentro de água (que ninguém está para morrer de susto nas férias de verão!). Por isso, mesmo cobertos de areia, deitámo-nos feitos baleias estendidas ao sol de um Algarve (onde, atenção, elas não existem) ainda bem atafulhado de gente, mas não tão infestado quanto nos meses de Julho e Agosto.
Mas hoje, e como sempre, na Meia Praia vê-se sempre de tudo. Desde que me lembro o areal é zona de confluência para turistas das mais variadas origens, mas também sítio de convívio e ponto de encontro para os que aqui vivem — ou passam férias — há tantos anos. Desde que me lembro o areal é, também, local privilegiado para o mexerico — jogo a que a nossa família sempre se dedicou com bastante fôlego e energia, fôssemos nós três ou dez (que, aliás, na praia, nunca fomos).
Porém, a malícia não vive nos mexericos que ali praticamos. Não. O que reina no nosso mexerico é um mais puro exercício de ficção e criatividade, no qual todos participamos e para o qual todos contribuímos com o maior dos entusiasmos. O segredo é não deixar que ninguém dê por isso — mas nisso já estamos nós peritos, já que quando damos início a essa garotice engraçada, todos sacam dos seus óculos de sol, e todos conversamos monocordicamente à medida que nos obrigamos a estar cuidadosamente quietos, ou mesmo a fazer movimentos minuciosamente direcionados no sentido oposto ao da moldura que alegremente comentamos, o que requer ainda mais perícia.
É muito simples. Em dias com menos conteúdo, olhamos para a nossa diagonal esquerda e imaginamos porque terá ‘a família’ chegado tão tarde à praia, já que o pobre avô já ali está sentado pelo menos desde as dez e os restantes resolveram chegar só 40 minutos depois. Passo a explicar: ‘a família’ é um conjunto de pessoas com que todos os anos nos cruzamos na Meia Praia, uma família numerosa liderada por um patriarca de topo muito rijo e sequinho — e provavelmente viúvo, a avaliar pelo descanso com que está sempre ali sentado sem dar cavaco a mulher nenhuma — , que há-de ser pai, tio, avô, tio-avô, sogro, tio emprestado, talvez até bisavô, de uma data de gente que o acompanha e brinca à volta dele toda a manhã.
‘A família’ é, portanto, o melhor dos alvos para a nossa brincadeira de análise: são muitos, e o cochicho é garantido. Basta que nos foquemos no que estará a dizer a tia loiraça e cinquentona que briga com o genro, ou no que pensará aquele pobre primo menos amante de praia, que insiste em estar sempre à sombra, meio vestido, meio despido, agarrado ao telemóvel. Na pior das hipóteses achamos graça às crianças, que, além de serem muitas — e de se multiplicarem veementemente ano após ano — são também de uma estirpe cravejada de cortesia, que leva a que os miúdos de três, quatro, cinco e seis anos já se tratem mutuamente por você, que ali ninguém está para ser mal educado.
Mas este, meus senhores, é só um exemplo de um dos dias com menos conteúdo. Disso vos garanto.
Naquela manhã soalheira, por exemplo, o meu pai chamou-me a atenção para um grupo em que eu ainda não reparara, mas aparentemente antigo — pelo menos instalado ali desde o início do verão — que, imediatamente, ofuscou toda a ficção que eu já estava a desenhar em torno de um casal de gémeos sentados à minha frente: a Matilde e o irmão da Matilde (porque não lhe ouvi o nome e foi assim que o fixei).
Também à nossa esquerda, embora mais perto de nós do que ‘a família’, estava, àquela hora, um senhor muito alto e muito gordo, de cabelos muito brancos — que contrastavam com a sua pele extremamente (e quase assustadoramente) bronzeada — sentado numa daquelas cadeiras altas, riscada de azul, plantada mesmo naquela curvatura do areal que marca a subida da última maré. Tinha, além da sua cadeira, uma pequena geleira (de onde nunca o vi tirar nada), um jornal (que, naquele instante, lia com grande afinco), e um altíssimo chapéu-de-sol muito colorido, montado de forma a que o seu corpanzil pudesse caber, sentado na sua cadeira alta, debaixo dele. Contudo, poucas vezes o vi à sombra.
Disse-me o meu pai que reparasse na forma impávida como ele estava ali sentado. Concordei: sentava-se como quem se senta num trono, com uma postura hirta que não se coadunava em nada com a descontração que os seus calções curtos e esverdeados pareciam publicitar.
«Deve ser uma pessoa importante ou, no mínimo, conhecida», disse o pai. «Daqui a pouco, vais ver, vai estar rodeado de gente — tudo à roda dele, disputando atenção. À uma farta-se e vai-se embora».
Eu não quis acreditar quando, de facto, começou o chegar o cortejo de pessoas que, lentamente, ia transformando a zona da praia ocupada pelo grande senhor que, entretanto — porque já tivera de se levantar pelo menos dez vezes para cumprimentar meio mundo — acabara por decidir que ficaria ali, de pé, provavelmente à espera que os apertos de mão fossem, também eles, terminando lentamente. Mantinha uma postura rígida e, como se estivesse pregado ao chão, não arredava pé do lugarzinho que decidira ocupar, com as pernas ligeiramente afastadas e os braços atrás das costas como um oficial do exército. Tinha um ar simpático, mas, como que prevalecendo a o seu porte e a sua posição, chamámos-lhe o ‘Marechal Piz Buin’ — que é o que a boa gente da praia usa nas peles estorricadas pelo sol.
Entretanto, era meio-dia e a família nortenha que estava ao nosso lado — sempre com as mais cómicas tiradas sobre ‘bolas’ de berlim e os 11 mandamentos das idas à praia — retirou-se, deixando-nos mais espaço para a nossa cuidada observação. Tirámos as saladas da geleira e seguimos caminho no nosso trabalho de legendagem.
«Reparem como aqueles três estão ali, enfurecidos, a discutir algo importantíssimo com o Marechal», dizia eu.
«E aquelas duas ali, claramente no papel de esposas dos presidentes e vice-presidentes do concelho dos macaquinhos, muito preocupadas com as rugas e a dieta, mas com o óleo bronzeador numa mão e a bola de berlim (de alfarroba, porque ainda julgam que isso as salva) na outra», ria o pai.
«Aquele, além», dizia o tio, no seu sotaque carregado, lacobrigense de gema, «Aquele, além, nam tarda alguém lhe baixa a sunguinha — na há ninguém que dê alegria àquele palanque de debate? Com mil diabos!».
Mas, para meu grande espanto, tudo se desenrolou como dissera o meu pai. O Marechal lá estava, agora novamente sentado no seu trono, sozinho, enquanto os restantes tinham abancado à volta dele num acampamento de comício muito desorganizado, mas intencionalmente construído a um diâmetro de talvez dois metros de segurança daquele que parecia ser o chefe de uma tribo, ao estilo dos homens da Madison Avenue (com um diretor criativo que todos querem bajular mas a quem precisam dar espaço). Eram, sobretudo, quarenta e cinquentões, os que em redor do bronze majestoso do oficial abancavam ali para toda a tarde, com geleiras, chapéus-de-sol, toalhas, mudas de roupa, sacos, saquinhos e saquetas. Eram, maioritariamente, homens que, depois da meia hora de atenção que o Marechal lhes concedia, se reuniam em rodinha, sentados nas suas cadeiras, esbracejando com firmeza opiniões que pareciam sair-lhes disparadas das pontas dos dedos.
«Mata», dizia eu.
«Esfola», acrescentava o pai.
«Esses babás até me cansam a beleza de tanto falejar… Ali, caídos aos joelhos do outro», ria o tio, que, lá pelo meio, dizia umas outras asneiras típicas dele e que eu me abstenho de copiar não por excesso de zelo, mas por não saber reproduzi-las.
E lá continuou o Marechal. Completamente inerte na sua cadeira, a deixar passar o tempo — agora, com toda aquela confusão, não havia jornal que se lesse, nem que se debitasse a si próprio. Lá de vez em quando havia um dos militantes que, com cuidado e simpatia, o abordava. Nós, deitados nas nossas toalhas ou empoleirados nas nossas cadeirinhas de gente pobre, imaginávamos o que esse corajoso lhe dizia, o tópico de conversa que teria introduzido.
«Então, senhor Marechal?», dizia eu.
«Cá se está mais um dia, a aproveitar este nosso solinho», dizia o pai.
«Éish», acrescentava o tio, com um certo repúdio.
Fosse o que fosse, não podia ser muito interessante, porque, mesmo de costas para nós — três parvos há mais de uma hora pasmados para um grupo de mais de 20 outros parvos à volta do seu rei macaquinho — era possível ver como o Marechal bocejava alongadamente e com insistência até que o pobre homem se cansasse da sua própria simpatia e recuasse levemente, tentando afastar-se não mais humilhado quanto ali chegara.
Era um espetáculo, no mínimo, engraçado de se assistir.
Por volta da uma da tarde, como dissera o pai, o Marechal levantou-se do seu grande trono e, por uns momentos, pôs-se de costas para o mar, como se estivesse a observar o amontoado de moscas varejeiras que, nem nas férias, o deixavam descansado. Ostentava um corpo que tinha, evidentemente, sido, em tempos, muito musculado. Hoje, carregado de gorduras que se deixavam dobrar em algumas grandes e pesadas pregas, viam-se ainda os seus peitorais, desenhados logo abaixo das suas largas clavículas e pendurados como o peito de uma rapariga jovem. Os braços eram, como as pernas, exageradamente gordos, mas não o suficiente para serem disformes. Acima dos seus calções verdes via-se uma proeminente barriga que, apesar de cómica e talvez até útil quando se punha a boiar na água (observado, é claro, pelo seu grandioso séquito que, entretanto, ficava na orla da praia, assistindo ao ritual), era, certamente, a razão pela qual o Marechal não se movia mais do que o estritamente necessário.
Pouco depois — há uma hora e dez minutos — o Marechal finalmente decidiu: era hora da retirada. Por isso, com rapidez suficiente para não perder muito tempo, mas com o vagar necessário para se esquivar a trapalhadas (e, imaginámos nós, para evitar chamar a atenção dos restantes), ele vestiu a camisola azul escura, desmontou o chapéu-de-sol, pendurando-o ao pescoço pela alça, segurou a geleira com uma das mãos e, com a mão livre, agarrou os chinelos e o pequeno saco de desporto que levara para a praia. Depois, reteve-se um pouco no primeiro chapéu-de-sol da comitiva que o seguia e cumprimentou, tenuemente, os que ali estavam. Seguiram-se todos os outros chapéus-de-sol e todas as outras pessoas que o acompanhavam sem um pingo de vergonha. Despediu-se de todos — de uns com mais entusiasmo do que de outros. Todos eles se levantaram quando o pesado homem passou por eles, como se carregasse uma aura de patriarca a que todos se sentiam obrigados — e talvez até fossem — a obedecer.
Foi só à uma hora e 20 minutos que o Marechal se pôde libertar daquela maluqueira, avançando com vagar pelo areal, em direção ao caminho-de-ferro. Sentíamos o peso de todo o corpo largo sobre os seus joelhos fracos e cansados, o que talvez explicasse a cautela com que pisava a areia movediça. Quando passou perto de nós, calma e arrastadamente, tentei ver-lhe os olhos. Neles há sempre um quê de qualquer coisa que nunca ninguém sabe bem o que é, ou o que é que diz, mas que toda a gente insiste que revela alguma coisa. Não os pude ver — o Marechal seguia de cabeça baixa, o que só me deixou ver a faixa do pouco cabelo que tinha.
Iria para casa, sentar-se a almoçar, sozinho, em frente à televisão. Depois, de duche tomado, seguiria para o escritório onde leria novamente o jornal — agora com toda a calma que o silêncio da casa vazia lhe proporcionava — e, por fim, ligaria aos dois filhos, ambos de férias em resorts algures no sul de França, e com quem trocaria meia dúzia de palavras rápidas para saber o paradeiro das crianças a quem prometera novíssimos brinquedos de novíssima geração para se desculpar por não os ter acompanhado na viagem. Certamente compraria essas brinquedos, lá para o fim do mês, mesmo antes da família regressar. Era um homem de palavra.
Na manhã seguinte, na praia, lá estava o Marechal Piz Buin — estancado à beira da água, com o seu trono montado milimetricamente debaixo do seu chapéu-de-sol. Ainda não havia ninguém na praia. O Marechal estava, contudo, acompanhado pela esposa. Afinal não vivia sozinho. Talvez nem fosse pai ou avô, e talvez até nem fosse marechal — o que certamente nem seria. Talvez fosse só comendador, por exemplo. Ou homem de negócios. Afinal, talvez fosse apenas um homem de palavra e, talvez por isso, todos quisessem um pedacinho dele.
Afinal, do Marechal Piz Buin sabemos muito pouco — e o pouco que sabemos é, na verdade, apenas o que as nossas efabulações nos permitem congeminar. A imaginação é uma coisa maravilhosa, e a prova disso é que, na verdade, o nosso Marechal de Piz Buin não tinha nada, a não ser a cor das embalagens.
Marta

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