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Mensagens

A mostrar mensagens de outubro, 2020

Piscar o olho à denúncia também é desiderato da literatura

  Graças a várias sortes que me calharam, nunca tive contacto com nenhum caso de violência doméstica. Pelo menos não o sei e só isso talvez acuse o verdadeiro problema desta questão: o silêncio de quem a vive nesses cenários e a ignorância de quem, tantas vezes sem dar por isso, assiste. Mas a verdade é mesmo essa: salvo uns vizinhos mais barulhentos cuja casa abria frequentemente as portas ao álcool — tinha eu 18 anos — nunca me vi diante de tamanha tormenta.  O que eu sei é que, mesmo nunca tendo vivido nada semelhante, desde cedo subscrevi aquela opinião francamente imatura de que «quem apanha, apanha porque quer» — e não fujo aos termos menos cuidadosos porque era mesmo assim que eu pensava. Julgava, com boa intenção mas sem um pingo de empatia, que «não há nada que justifique aturar um companheiro violento», com ou sem bebida.  Bem, não que eu acredite que algo justifique a postura de quem maltrata quem quer que seja. Não. Fique isso bem claro. Mas o certo é que hoje...

Três mulheres, três escritoras (lembradas por Stefan Bollmann)

Com base no livro Mulheres que Escrevem Vivem Perigosamente , de Stefan Bollmann, falamos-vos de três mulheres escritoras que, quer pela audácia, quer pelo talento, marcaram a História. Hildegarda Binden (1098-1179) e uma porta inusitada para a escrita Hildegarda Binden A proibição de São Paulo de que as mulheres escrevessem ou pregassem impediria a monja Hildegarda Binden (1098-1179) de se dedicar à sua vocação. Porém, anos mais tarde, depo is de Hildegarda  atravessar um período de doença, o Papa Eugénio III vê na sua “vocação de profetisa” uma justificação suficiente para a autorizar a, finalmente, registar as suas visões, deixando-as para a posteridade. Nos manuscritos, a monja descreve a doença como uma espécie de castigo divino infligido por não seguir aquela que considerava ser a sua missão: dar voz a Deus através da escrita. Hildegarda já tinha, à época, um revisor — os textos eram relidos e corrigidos por um escriba que melhorava, entre outros aspetos, a gramática (la...

Resiliência de poetas

Olhos postos nos ladrilhos nojentos da cozinha, a bater calcanhares furiosos para a frente e para trás como se quisesse assinar um sulco e afundar-me na divisão. Transpiro para dentro mas sinto-o como se me escorregasse um pingo de suor lento do pescoço para as clavículas, e desses contornos para os limites do peito. Marcho sem parar, por mais cansada que me sinta, e começo a querer abrir feridas nos cantinhos das unhas dos polegares, de tanto que os esgaço com as dos anelares nervosos. Abre-se a porta e eu paro, sentindo o meu couro cabeludo quente – ao longe, ouço a mãe dizer-me um displicente quem tanto transpira, até da cabeça.  Já sei que me espera um desacato qualquer. — Doutor, não se atire já a mim! Eu juro que tenho feito de tudo... – digo-o com o ar pálido de quem diz a verdade mas teme que ela pareça mentira.  Tenho a impressão de que as minhas unhas já sangram, de que o cabelo se colou à minha cara e de que, entretanto, esculpi esporões calcâneos que em breve abri...

Cessão, sessão, cessação e secção

Quatro termos tramados: cessão , sessão , cessação e secção . No «100 erros» de hoje falamos-vos de quatro termos que em nada são iguais mas que, amiúde, são confundidos entre aqueles que escrevem. Referimo-nos a quatro palavrinhas que têm algumas semelhanças, mas que ostentam sobretudo as suas diferenças. Vejamo-las. Duas dessas palavras são homófonas, o que significa dizer que têm o mesmo som, mas escrevem-se de maneiras diferentes, tendo, obviamente, significados também diferentes. Falamos dos termos cessão e sessão . A palavra cessão tem várias acepções, podendo significar o «acto ou efeito de ceder, a transmissão de um bem ou direito a outrem através de uma quota», «o acto de desistir de algo ou de renunciar a alguma coisa; «a acção de dar permissão» etc. Leiamos alguns exemplos do uso deste termo: 1) «A cessão dos bens foi justa.» 2) «Diga sim à cessão de material escolar àqueles que mais precisam.» 3) «Claro que cessão e cessação são coisas diferentes!« Em segundo lugar, t...

Cair para dentro, com Valério Romão

Cair para dentro é um livro que vem fechar o ciclo de três romances a que Valério Romão resolveu dar o sincero mas visceral nome de «paternidades falhadas». Eu, que gosto de andar sempre ao contrário, não li os primeiros dois romances da trilogia – Autismos e O de Joana –, mas a verdade é que Cair para dentro foi uma daquelas compras precipitadas e quase violentas que fazemos quando não vamos à procura de nada numa livraria mas encontramos algum livro (ou algum autor, como foi o caso) que simplesmente temos de levar connosco.  Assim, feito o desabafo, mas sabendo que o tema (a família e as suas disfunções) e, sobretudo, a linguagem de Romão (que conheci através do  Facas de que já aqui vos falei) são duros de roer,  mergulhei neste livro de cabeça, desrespeitando a ordem de publicação da trilogia – o que, entretanto, posso dizer que é um exercício igualmente interessante e que em nada desvirtua a leitura dos restantes romances. Mas, afinal, de que trata Cair para ...