Cair para dentro, com Valério Romão

Opinião sobre o texto de Valério Romão

Cair para dentro é um livro que vem fechar o ciclo de três romances a que Valério Romão resolveu dar o sincero mas visceral nome de «paternidades falhadas». Eu, que gosto de andar sempre ao contrário, não li os primeiros dois romances da trilogia – Autismos e O de Joana –, mas a verdade é que Cair para dentro foi uma daquelas compras precipitadas e quase violentas que fazemos quando não vamos à procura de nada numa livraria mas encontramos algum livro (ou algum autor, como foi o caso) que simplesmente temos de levar connosco. 

Assim, feito o desabafo, mas sabendo que o tema (a família e as suas disfunções) e, sobretudo, a linguagem de Romão (que conheci através do Facas de que já aqui vos falei) são duros de roer, mergulhei neste livro de cabeça, desrespeitando a ordem de publicação da trilogia – o que, entretanto, posso dizer que é um exercício igualmente interessante e que em nada desvirtua a leitura dos restantes romances.

Mas, afinal, de que trata Cair para dentro? É simples: sobre uma relação de desequilíbrio (e, aliás, quase de total descompensação) entre uma mãe, Virgínia, e uma filha, Eugénia. A primeira é controladora e procura, em certa medida, preencher a ausência de um marido sempre bebido e preso a um «cemitério de beatas» que a abandonou ao ver nascer-lhe uma menina. A segunda é uma rapariga ineficiente, que engoliu poesia em seco toda a vida, estudou Filosofia (como, aliás, Valério Romão) e que da vida pouco ou nada sabe por lhe ter sido vedado tudo. Ambas vão decaindo no que lhes falta e no que lhes é lentamente tirado até que Eugénia (longe de ser adulta) se vê obrigada a ser mãe quando Virgínia se esvai nas mãos do Alzheimer.

Portanto, não é difícil concluir que Cair para dentro é um excelente título. Não só porque as personagens vão sendo engolidas por um poço – talvez mais comum do que pensemos – mas porque nós, leitores, somos obrigados a cair com elas, tal o engenho da linguagem e sobretudo da estrutura (não particularmente fácil de acompanhar) deste romance.

O texto, que percorre décadas de vida da mãe e da filha, é lido pela voz de ambas as personagens (ora uma, ora outra, ora ambas, em diálogos de desvario) e avança lentamente, o que permite ao leitor entender o prejuízo que esta relação desnorteada causa na relação mãe-filha. Aliás, a doença da mãe – e o apagar de memórias e a loucura que a acompanha – acaba por se reflectir na estrutura do próprio livro, o que, para mim, fez da sua leitura uma impressionante experiência imersiva.

Por fim, importa notar que a velocidade da escrita de Romão e as suas cruas ferroadas descritivas são características que ajudam a que nos sintamos, como Eugénia e Virgínia, a cair para dentro de um precipício interior onde frequentemente encontramos preocupações e frustrações de foro identitário. E porquê? Porque as nossas (muitas vezes múltiplas) identidades não podem nunca dissociar-se das coisas que não correram bem no seio familiar: são esses «curto-circuitos» (como lhes chama o autor) que nos definem – e não, eu não venho de uma família disfuncional, quando muito de uma família truncada. 

Marta Cruz

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Autora: Valério Romão
Edição: Abysmo, 2018


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