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Piscar o olho à denúncia também é desiderato da literatura

 
Lídia Jorge, opinião literária

Graças a várias sortes que me calharam, nunca tive contacto com nenhum caso de violência doméstica. Pelo menos não o sei e só isso talvez acuse o verdadeiro problema desta questão: o silêncio de quem a vive nesses cenários e a ignorância de quem, tantas vezes sem dar por isso, assiste. Mas a verdade é mesmo essa: salvo uns vizinhos mais barulhentos cuja casa abria frequentemente as portas ao álcool — tinha eu 18 anos — nunca me vi diante de tamanha tormenta. 

O que eu sei é que, mesmo nunca tendo vivido nada semelhante, desde cedo subscrevi aquela opinião francamente imatura de que «quem apanha, apanha porque quer» — e não fujo aos termos menos cuidadosos porque era mesmo assim que eu pensava. Julgava, com boa intenção mas sem um pingo de empatia, que «não há nada que justifique aturar um companheiro violento», com ou sem bebida. 

Bem, não que eu acredite que algo justifique a postura de quem maltrata quem quer que seja. Não. Fique isso bem claro. Mas o certo é que hoje tenho algumas reservas a respeito do que pensa e sente quem não denuncia os maus-tratos de que é vítima.

Há uns anos li um conto da Lídia Jorge que é capaz de ter tido um papel importante na forma como hoje respeito essas cenários que felizmente desconheço, e que hoje me faz pensar em como a denúncia de certas realidades é, também, desiderato da literatura.

Marido é um conto sobre Lúcia, a porteira de um prédio que vive no décimo andar e todas as noites recebe o marido bêbado em casa. Todas as noites Lúcia reza para que ele chegue à hora de jantar e, quando ele não chega, sente-o entrar de madrugada, escondendo-se do perigo que ele representa. Mas Lúcia é, certamente como tantas mulheres que vivem situações semelhantes, uma mulher feliz na sua infelicidade, uma mulher que nega as ajudas de todos os vizinhos e que se recusa a aceitar que se metam com o seu homem.

«Aí a porteira entendeu que se haviam congregado todos contra o seu homem e perdeu a doçura porque um homem é um homem, spes nostra, ad te clamamus, Rex, Jessus, benedictus fructus ventris tui nobis post hoc exilium, ostende. E assim sucessivamente. Isto é, um homem é um homem e um sacramento ainda é mais do que um homem porque esse é uma liga entre dois e nem parte dele perece na Terra. Oh, vita, dulcedo!» (Lídia Jorge, Marido e outros contos, Publicações Dom Quixote, 1997, p.17) 

E é precisamente porque Lúcia é esta mulher diferente de mim, de uma época que não é a minha e na qual não sou capaz de me posicionar, que eu me vejo capaz de consentir na dificuldade que ela também sentiria em ver-se na minha posição — a de mulher emancipada que tenciona não tolerar qualquer companheiro que a ameace. Lúcia é, por outro lado, a representação de milhares de pessoas que crêem piamente na sua incapacidade, tanto quanto crêem piamente que cumprem o seu papel com primor. E quem sou eu para questionar esse raciocínio?

O papel da literatura é, a meu ver, mesmo este: fazer-nos conhecer mundos que não são o nosso e, de preferência, fazer-nos pensar sobre o que não compreendemos, quem sabe fazer-nos perceber um pouco melhor o que nos rodeia, tornando-nos um bocadinho mais humildes. 

George Orwell escreveu, num dos seus ensaios mais espontâneos, que não há escritor que escreva nada de conveniente sem um certo pendor político — na acepção mais ampla da palavra —, isto é «sem um desejo de empurrar o mundo numa dada direcção, de alterar as ideias da outras acerca do tipo de sociedade pela qual devem lutar» (George Orwell, Porque escrevo e outros ensaios, tradução de Desidério Murcho, Antígona, 2008, p. 17). 

Eu, de acordo com ele, julgo que dificilmente Lídia Jorge terá escrito o conto Marido sem desejar fazer-nos pensar sobre aquilo a que algumas pessoas se sujeitam. Dificilmente alguém o terá lido sem ver nele um pedacinho de espírito público e dificilmente alguém não terá sentido nisso uma enorme vontade de mudar o mundo em que vive essa gente que só na morte vê descanso, mas que nem assim vê o diabo nos companheiros. 

Estou longe de poder garantir que este conto de Lídia Jorge não tenha justificado umas quantas brincadeiras de gente maliciosa e talvez alguma nova vítima do álcool e da violência. Suponho, contudo, que essa percentagem tenha sido irrisória. É um risco certamente calculado que não retira o mérito de quem denuncia violências destas. Quanto a mim, sei que me tornou mais cuidadosa.

Marta Cruz

Escrivaninha

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