Avançar para o conteúdo principal

Três mulheres, três escritoras (lembradas por Stefan Bollmann)

Com base no livro Mulheres que Escrevem Vivem Perigosamente, de Stefan Bollmann, falamos-vos de três mulheres escritoras que, quer pela audácia, quer pelo talento, marcaram a História.

Hildegarda Binden (1098-1179) e uma porta inusitada para a escrita

Livro de Stefan Bollmann
Hildegarda Binden

A proibição de São Paulo de que as mulheres escrevessem ou pregassem impediria a monja Hildegarda Binden (1098-1179) de se dedicar à sua vocação. Porém, anos mais tarde, depois de Hildegarda atravessar um período de doença, o Papa Eugénio III vê na sua “vocação de profetisa” uma justificação suficiente para a autorizar a, finalmente, registar as suas visões, deixando-as para a posteridade.

Nos manuscritos, a monja descreve a doença como uma espécie de castigo divino infligido por não seguir aquela que considerava ser a sua missão: dar voz a Deus através da escrita. Hildegarda já tinha, à época, um revisor — os textos eram relidos e corrigidos por um escriba que melhorava, entre outros aspetos, a gramática (latina). Hildegarda tinha ainda um secretário monge que a ajudava na redacção. Posteriormente, os textos da monja-profetisa eram ainda passados a limpo uma última vez.

São da sua autoria Liber Scivias (Conhece os Caminhos de Deus), obra que Stefan Bollman descreve como “uma interpretação cosmológica da história sagrada” (Bollman, 2006: 42), além de textos sobre moral, medicina e a criação. Parece que no caso da Hildegarda, em vez de castradora, a religião foi a porta para a afirmação da força da sua escrita.

Sidonie-Gabrielle Colette (1873-1954), excentricidade e bom gosto

Colette e a sua escrita
Sidonie-Gabrielle Colette


Sim, é a Colette que nos referimos. Sidonie-Gabrielle Colette nasceu numa pequena aldeia da Borgonha, no norte de França. Na adolescência tinha um hábito excêntrico: pedia à mãe que a acordasse às três da manhã para dar uma volta pelo campo — que descrevia como tendo um efeito revigorante no modo como se via a si mesma, permitindo-lhe ter mais consciência do seu valor.

Casaria com o escritor Henry Gauthier-Villars (que escrevia sob o pseudónimo de Willy), de quem se viria a separar aos 33 anos. É nessa altura que adquire a sua independência financeira, começando a trabalhar como escritora, jornalista e protagonizando até excêntricos números de cabaré. Era presença assídua no salão literário de Natalie Barney — que reunia escritores e artistas de todo o mundo — e movia-se no meio artístico da Paris da Belle Époque.

A adolescência, o amor maduro e a sexualidade são um dos temas mais trabalhados nas obras de Colette, como por exemplo em A Gata — uma pequena novela que explora a figura do menino-homem (a personagem de Alain) ainda preso às delícias maternais, bem como a flagrante distância entre a figura da mãe e a da jovem mulher, sem filhos e recém-casada.

No meio destas figuras femininas, a gata afirma-se. Ainda que se limite a miar e aos comportamentos ociosos de um felino doméstico, adquire um simbolismo estrondoso: é a conjugação possível, e contudo a mais reconfortante e prazerosa, do amor filial e do amor sensual para Alain — "jovem e caprichoso e amimado" que "vivia ao ritmo comercial dos seis dias e sentia o domingo” (Collette, 1959 : 33). Stefan Bollman aponta o facto de Colette e de a sua escrita serem avessas a uma visão sumamente “trágica da vida” como um possível motivo para o seu (injusto) lugar secundário na Literatura Francesa. Ainda assim, Colette marcaria, para sempre, a História da Literatura.

Virginia Woolf (1882–1941) e reclamar um canto seu

Virginia wool, um quarto que seja seu
Virginia Woolf

Virginia Woolf, escritora, ensaísta, editora e uma das mais proeminentes figuras do Modernismo. Casou com Leonard Woolf, com quem fundou a editora Hogarth Press — que lhe permitiu escrever com a liberdade que muitas escritoras da época só almejavam. Pertenceu ao Grupo de Bloomsbury, um importante grupo intelectual britânico da época.

O seu primeiro romance foi Voyage Out mas foi Jacob’s Room (1922) que lhe garantiu o verdadeiro êxito. Seguiram-se Mrs Dalloway (1925), Orlando (1928), The Waves (1931), entre outros. Com uma prosa muitas vezes hermética, Virginia Woolf vivia acometida pelo medo de que os leitores não vissem sentido naquilo que escrevia. Hoje em dia algumas obras suas tendem a ser interpretadas e analisadas da perspectiva dos Estudos de Género (por exemplo, Orlando). 

Virginia Woolf sofria de uma doença psíquica e suicidar-se-ia aos 59 anos, em 1941, em Lewes, após um período de isolamento devido à Segunda Guerra Mundial. Além de uma inegável qualidade literária, a autora refletiu sobre a condição da mulher numa série de palestras que deu e que se encontram coligidas no célebre ensaio A Room of One's Own — no qual defende que, para escrever ficção, a mulher tem de usufruir de dois bens: dinheiro e uma divisão onde possa escrever.

Virginia Woolf afirmou-se vigorosamente como escritora e ocupa hoje um lugar cimeiro na Literatura Mundial.

***

Para ficarem a conhecer com mais pormenor a história de diversas mulheres escritoras, das mais variadas épocas, leiam, da editora Quetzal, Mulheres que Escrevem Vivem Perigosamente, da autoria de Stefan Bollmann, e inspirem-se na força da pena destas criadoras.

Elsa Alves

Escrivaninha

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Nem só de "passado" se faz o adjectivo

  A  palavra “passado” — não o passado que passou, mas o adjectivo — é muitas vezes erradamente utilizada.  A culpa do erro? Atribuimo-la à confusão com uma outra classe de palavra: o advérbio , que  não  varia em género (masculino e feminino) e número (singular e plural).  Por causa deste quiprocó, dizemos muitas vezes “passad o ”, mesmo quando deveríamos usar “passada”, “passadas” ou “passados”,  conforme a expressão a que o adjectivo diga respeito. E sta confusão acontece apenas quando se usa o adjectivo num contexto temporal, isto é, com o sentido de  determinado tempo volvido,  já que a ninguém ocorre usar sempre “passado” noutros contextos, como: " A camisa foi mal  passado ."  " Quero os bifes bem  passado , por favor!", " A tarde e a manhã foram bem  passado ."  Toda a gente diz, e bem: A camisa foi mal  passada .  Quero os bifes bem  passados , por favor!  A tarde e a manhã foram bem ...

Homenagem em forma de pergunta, parte I

A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off. Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta. *** Sandra Cristina Fernandes Pera Médica de Medicina Geral e Familiar Sandra Fernandes 1) Porquê Medicina? Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: ca...

Eat that doubt

Desenho de Fuinha Ele, ao sol, vermelho como um erro.   Eu a vê-lo; a digladiar-me com os sórdidos detalhes.   Nem a benevolência da luz influía afinação na certeza.   Amor,   como a  súbita  chuva de verão,  começa prende-te a forma esquiva; estaca em quieta complacência.   Dentro duma jarra fica   como o cúmplice  estoico do segredo.   És a decisão   de quem segue repetindo    eat  that                  doubt                     ante a luz propícia, contra a investida de uma condição.     Março, 2019     Nota : Eat that question é o título de uma música de Frank Zappa,  que inspirou o título do texto.   Elsa   Escrivaninha