Avançar para o conteúdo principal

Dicas para escrever um diálogo

 

Diálogos de ficção como prender o leitor

Quem gosta de ler ou deseja escrever boas histórias sabe que há um elemento a que raras vezes podemos fugir e sem o qual nada do que lemos nos convence: o diálogo.

Pois é, o objectivo do diálogo — do grego διάλογος, que significa «por intermédio da palavra» — é não só servir o avançar do arco narrativo de qualquer história, mas também — e sobretudo — revelar as características dos intervenientes. 

Os momentos de diálogo são, por isso, momentos de recuo na narrativa que servem para a catapultar para um determinado lugar de acção, dando-lhe o contexto necessário para esse avanço/recuo e semeando os pormenores que definem a forma como cada uma das personagens se comporta. 

Mas escrever um bom diálogo não é fácil. Antes de mais porque implica que quem o escreva vista a pele das várias personagens que intervêm e saiba exatamente como é que cada uma reagiria a determinado estímulo.

Eis algumas das dicas que, aqui na Escrivaninha, consideramos essenciais para quem aprender a escrever um diálogo:

1) Não comecem a escrever sem que saibam o objectivo do vosso diálogo. Decidam que personagens participam e por que razão intervêm. 

Uma personagem descomplexada e tagarela pode falar sem parar — perdendo até o fio à meada —, chegando a dizer demais na hora errada e tropeçando várias vezes no seu próprio raciocínio e linguagem. 

Já uma personagem ponderada talvez tenha um discurso mais hesitante, mais pausado ou, quem sabe, até linguisticamente mais estruturado (dado que é uma personagem que, claro, organiza o discurso primeiro na sua cabeça).

2) Esforcem-se por ouvir a emoção de cada personagem e sejam tão fiéis ao que elas sentem quanto possível. 

Assim, tentem que a forma e a descrição estilística em que envolvem o diálogo sejam tão invisíveis e comedidas quanto possível, esforçando-vos por que tudo fique dito na fala. Por exemplo, se possível, evitem dizer «— gritou Miguel, zangadíssimo», mostrando antes o quão zangado está ele pelo seu discurso e, quem sabe, por um gesto que o acompanhe.

3) Lembrem-se sempre que um bom diálogo — e um diálogo verosímil — é linguisticamente imperfeito. 

Pois é, no diálogo devemos esforçar-nos por deixar de lado os purismos da língua. Isto, claro, considerando o contexto, o tempo e a personagem que fazemos falar. 

Deixem os estigmas de parte e esqueçam as politiquices: compreendam que, para bem da verosimilhança e naturalidade do vosso diálogo, um agricultor do nosso tempo não falará como um cavalheiro de Camilo Castelo Branco (e menos ainda como uma morgada).

4) Não se esqueçam de que um diálogo real tem o mínimo de «gorduras» e está cravejado de hesitações e até de silêncio. 

Não ignorem o poder de uma resposta vazia ou monossilábica — se não acreditam em nós, analisem as vossas conversas e atentem a quantas vezes as hesitações atrapalham o vosso raciocínio, deixando-o aquém da vossa ideia. 

Da mesma forma, eliminem todos os «Olá» e «Adeus» que não seriam de facto ditos — se vocês não os proferem, as vossas personagens também não.

5) Surpreendam o vosso leitor sempre que puderem. Fazê-lo passa por procurarem ser originais na língua de cada personagem e por reestruturar as expectativas do leitor quando ele se acomodar.

Procurem, por exemplo, dar às vossas personagens as «bengalas» linguísticas que melhor servirem as suas personalidades e lembrem-se de que toda a gente tem expressões que insiste em repetir (uma das minhas, por exemplo, é «Eu não queria acreditar» — e imagine-se o quão cómico e idiossincrático não é quando eu o digo num contexto em que não bate certo).

6) Por fim, façam bom uso dos verbos dicendi — isto é, dos verbos enunciativos que servem para introduzir o discurso — e saibam pontuar o diálogo. 

Antes de mais, lembrem-se que do rol dos verbos dicendi não consta apenas o verbo «dizer». Há uma longa lista deles e cada um tem um propósito particular. 

No que à pontuação diz respeito, por agora lembramos-vos apenas que, em Português, o discurso da personagem e do narrador se separa com travessões (—) e não com aspas. Sobre a utilização de maiúsculas e minúsculas, sobre o ponto final, os dois pontos e sobre a vírgula falaremos noutro dia. 

Até lá, procurem trabalhar a verosimilhança dos vossos diálogos com a ajuda destas breves dicas. 

Querem uma sugestão? Escrevam-nos tão rápido quanto a vossa pena ou teclado vos permitir e, antes de o limarem, leiam-no em voz alta.

Marta Cruz

Escrivaninha

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Nem só de "passado" se faz o adjectivo

  A  palavra “passado” — não o passado que passou, mas o adjectivo — é muitas vezes erradamente utilizada.  A culpa do erro? Atribuimo-la à confusão com uma outra classe de palavra: o advérbio , que  não  varia em género (masculino e feminino) e número (singular e plural).  Por causa deste quiprocó, dizemos muitas vezes “passad o ”, mesmo quando deveríamos usar “passada”, “passadas” ou “passados”,  conforme a expressão a que o adjectivo diga respeito. E sta confusão acontece apenas quando se usa o adjectivo num contexto temporal, isto é, com o sentido de  determinado tempo volvido,  já que a ninguém ocorre usar sempre “passado” noutros contextos, como: " A camisa foi mal  passado ."  " Quero os bifes bem  passado , por favor!", " A tarde e a manhã foram bem  passado ."  Toda a gente diz, e bem: A camisa foi mal  passada .  Quero os bifes bem  passados , por favor!  A tarde e a manhã foram bem ...

Homenagem em forma de pergunta, parte I

A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off. Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta. *** Sandra Cristina Fernandes Pera Médica de Medicina Geral e Familiar Sandra Fernandes 1) Porquê Medicina? Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: ca...

Eat that doubt

Desenho de Fuinha Ele, ao sol, vermelho como um erro.   Eu a vê-lo; a digladiar-me com os sórdidos detalhes.   Nem a benevolência da luz influía afinação na certeza.   Amor,   como a  súbita  chuva de verão,  começa prende-te a forma esquiva; estaca em quieta complacência.   Dentro duma jarra fica   como o cúmplice  estoico do segredo.   És a decisão   de quem segue repetindo    eat  that                  doubt                     ante a luz propícia, contra a investida de uma condição.     Março, 2019     Nota : Eat that question é o título de uma música de Frank Zappa,  que inspirou o título do texto.   Elsa   Escrivaninha