Como falam os amargurados


Texto ficcional de Marta Cruz, na Escrivaninha



— Bom, de facto só se estraga uma mesa... 
— Ai, por favor fala baixo!
— Se julgas que vou passar a noite calado só para não teres de me ouvir muito te enganas, ó!
— Ah, imagino. Mas é um dia especial, João. Não custa nada ter calma...
— Estou mais do que calmo. Só dispensava a má companhia.
— Nem sei onde achavas que te iam sentar. 
— Antes só que mal acompanhado!
— Deixa estar que nem que me viesses pintado de ouro.
— Ah, de ouro talvez, não é?
— Enfim... Se não te comportas, comporto-me eu. A nós ninguém nos estragou a cerimónia.
— Ah, não, pois não. De facto, nessa cerimónia, quem estava mal era só eu. 
— Claro, já faltava…
— É preciso ter lata!
— Lata para quê? Pela decência de não te dizer isso na cara? Ou por te ter dito muitas outras coisas de que não gostaste?
— E depois sou eu quem não se comporta.
— Ah, sim, e eu hei-de ficar calada enquanto tu te sais com gracinhas tolas. Com franqueza!
— Responde, responde. Que não te fique nada por dizer, mulher. Assim a noite sempre é mais animada!
— Ai, peço-te… Não tarda a maquilhagem escorre-me de nervos.
— Isso é que não pode ser! Não te canses: há poucas coisas mais importantes que manter a compostura. 
— Ó João, não me chateies...
— Ora essa, sempre às ordens! Mas sabe Deus como eu gostava de saber quem é o alvo desse teu decote.
— Epá, vamos parar com isto, por favor?
— Ou?
— «Ou» nada, homem! Contigo tudo é negociação! 
— Não negociei contigo e fiquei na mó de baixo… 
— Não é hora para isto…
— Pois, lá hora nunca se arranjou.
— Vá, por favor, antes que alguém dê por isso.
— Ninguém no seu perfeito juízo nos sentava juntos, Madalena.
— Se lhes tenho contado estariam preocupados com isso. Poupei-os. 
— De facto, é um stress de perder a cabeça... 
— Não é para ti. Hoje é o dia deles, não merecem estar de olho em nós.
— Esperemos que não se arrependam. 
— Se engolirmos este sapo não há-de haver razão para isso. 
— E o teu amigo não quis vir?
— João, não falemos nisso agora, por favor.
— «Não falemos nisso agora»… Essa agora é que me lixa! Nunca falámos! 
— Deixa a coisa arrefecer, João, não me perdoo se fizermos uma fita de que a Rafaela nunca mais se esqueça. Menos ainda aqui. 
— Mas o que é que a Rafaela tem a ver com isto, agora? Ela nem está aqui, ficou bem entregue à minha mãe. 
— Não foi isso que quis dizer.... Havemos de falar em breve, mas por favor tem calma.
— Nunca tive outra coisa: até te aborreci. 
    Apesar da amargura, João mantinha o cotovelo sobre a mesa e os dedos escondiam-lhe os lábios zangados. Madalena, inquieta, não parava de se ajeitar na cadeira e, volta e meia, levava a ponta da sua unha pintada ao canto do olho para garantir que o risco não se borrara. Não olhavam um para o outro, mas, nos seus sorrisos ocos e trajes imaculadamente passados a ferro, quem os visse não notaria a falência em que se viam.
— Amiga! Obrigada por terem vindo! — esganiçou Ana, balouçando-se no vestido branco.
— Estás tão bonita… Muitos parabéns! — disfarçou Madalena, levantando-se lentamente enquanto ajeitava o vestido.
— E nem casados de fresco sabemos ser o casal mais requintado da sala! — acrescentou Bruno, estendendo a mão a João que, com a impávida simpatia do costume, se agitou fortemente para fazer sair a brincadeira:
— Isto de ter classe é outra coisa, meu amigo. É outra coisa!

Marta Cruz 

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