Cores de Natal, maçãs verdes e kitkats


os natais de Marta Louro Cruz


Se há coisa de que gosto no Natal — e que tendo a dar como certa nessa época do ano — são as cores. 

As cores persistem na minha vida desde sempre. As das lombadas dos livros meticulosamente encaixados nas estantes da minha infância, as das folhagens que cobriam o quintal, as das tintas com que, cedo, a minha mãe consentiu que pintasse o cabelo, e as das luzes que, no Natal, iluminavam a casa. 

Como toda a gente, várias vezes julguei que me faltava muita coisa — é assim quando se é jovem e não sabe o que se tem. Mas cores, essas sempre as tive. 

Desde os meus dez anos que o Natal foi passado um ano em casa, no conforto da família, e um ano numa qualquer cidade do mundo a que os meus pais me quiseram apresentar. Primeiro Londres, depois Madrid, Paris, e até Marraquexe. Em 2012, a escolha recaiu sobre Roma, porque à data eu vivia mergulhada em sebentas de Cultura Romana na Faculdade de Letras e estava certa de que, ali, perceberia tudo quanto não sabia ler nas entrelinhas. 

Recordo ruas cheias, incontáveis idas a pizarias e inúmeros regressos a uma gelataria chamada Giolitti que me fizeram trazer uns valentes quilos a mais para Portugal. Lembro-me da fachada do Coliseu — que, por sorte, não estava em restauro — e do cheiro ensanguentado daquelas paredes de uma época em que agradeci não ter vivido. Da camisa de lantejoulas que comprei num antiquário, à forma pitoresca com que os italianos pronunciavam Trastevere, tudo foi colorido à sua maneira — tirando a consoada de maçãs verdes e kitkats, elegantemente tomada sobre a cama de casal que partilhei com o meu pai porque, apesar dos meus verdíssimos 20 anos, a gerência do hotel entendeu que, naqueles dez dias, eu seria Mrs. Cruz.

Mas não fosse eu fascinada por relíquias e algo deslumbrada pela Igreja, o Vaticano era o único sítio aonde não podia deixar de ir. E no Vaticano o que também não faltava eram cores. Isso memorizei com particular encanto porque, apesar de efémeras como as recordações, as cores daquele lugar pareciam capazes de pertencer até ao imaginário de quem nunca as vira. Lembro-me bem do pano carmim que escorria pela janela de onde nos benzeu o Papa, do bege dos pergaminhos que tentei sempre em vão decifrar, da camisola de lã amarela do nosso guia, e do contraste entre as talhas douradas e o vermelho vivo das alcatifas. 

Do que não me lembro é talvez do que devia ter mais bem gravado na memória: das cores da Capela Sistina. Estou sentada à secretária esforçando-me por recuperar qualquer detalhe, mas a memória passa-me a perna com aquele incómodo efeito placebo que todos conhecemos: tens de te lembrar e, por isso, não te lembrarás como querias. Havia azuis, creio que claros, brancos, verdes e (suspeito) alguns acastanhados. Corpos, nuvens, templos, e variadíssimas coisas que não sei situar. 

Forço as pálpebras uma contra a outra, deitando por terra qualquer resultado que o creme anti-envelhecimento pudesse vir a ter. Tento resgatar os tons da «Criação de Adão» ou, pelo menos, a posição da «Expulsão do Éden». Enfim, vergo-me à Internet e dou de caras com uma notícia sobre a reprodução fotográfica integral da Capela Sistina. Na capa, adivinhe-se, uma fotografia de toda a demografia do Vaticano, sentada diante do «Juízo final». 

Seria uma grande ironia que o meu fosse este: o de não me lembrar. Eu que só queria recordar um Natal colorido para animar o deste ano. E não deixa de ser curioso que haja milhares de imagens de um sítio que estamos proibidos de fotografar. 

Marta Cruz

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