Detesto telefonemas



Falar ao telefone é, para alguns, um suplício.
Fonte: Unplash


Acabo de virar a página e o telefone toca.

Detesto telefonemas. Sobretudo os que não sou eu a fazer e mais ainda os que me interrompem alguma tarefa prazerosa. Quem é que veio instaurar esta mania-hábito de estarmos em constante contacto uns com os outros, a todos os momentos do dia quando, se nos pusermos a relatar a nossa vida com esse tipo de regularidade, acabamos por ter tão pouco para dizer?

Nos dias mais preenchidos (cheios de aplicações, chats e malditos aparelhos fervilhantes) ataca-me uma daquelas dores que insistem em testar a estrutura das minhas têmporas. São constantes ding-dings, vibrações, vozes baixinhas, leituras, estímulos visuais, correctores automáticos hitlerianos e tic-tics de teclas que só não choramingam por batermos tanto nelas porque não conseguem. E uma pessoa não pode ao menos detestar telefonemas?

Detesto telefonemas. Sobretudo os de números que desconheço  (mesmo sabendo que posso perder a oportunidade de uma vida por teimar com esta irritação) e mais ainda os que me deixam a meio de uma frase, de um parágrafo ou de um capítulo. Não há, num livro, unidade de sentido que me pareça poder ser causticamente interrompida, muito menos por um telefonema indesejado.

Respiro fundo enquanto o telefone toca incessantemente na sala. Chora ele, com aquele seu risinho estridente de «Vem, que alguém quer falar contigo para não te dizer nada», e choro eu, com as minhas assombrosas dúvidas sobre se me levanto da cama para ter de dar uma qualquer corrida inglória até à sala, tropeçar em variadíssimas coisas pelo caminho e ainda correr o elevadíssimo risco de chegar ao descanso do bicho e ele parar de cantar.

Acabo por me levantar e lá vem a tourada do costume. É um passar desenfreado pelo labirinto de móveis mal encaixados sem ir contra nenhum, sem embicar naquele tacão eriçado do soalho e sem deitar abaixo o próprio telefone, cujo poiso está maravilhosamente equilibrado no cantinho de uma estante como um animal de circo.

Ai, quem não o deitasse de vez ao chão para que se partisse logo em vários bocados!

Detesto telefonemas. Sobretudo os que me obrigam a ter estas reacções despropositadas. Estávamos tão bem, eu e as palavrinhas dos outros, junto ao candeeiro... É conversa mais do que suficiente, principalmente depois de um dia com tantas solicitações indiscretas.

Desta vez alcanço o mecanismo que ainda pede que alguém lhe responda — já só penso em calar-lhe as lamúrias e, quem sabe, zangar-me com o responsável por este desconforto. Atendo e respiro fundo para que a minha enervação não se ouça: o pai tinha dado uma estrondosa queda, mas «não era nada». Afinal não há melhor razão do que esta para detestar telefonemas.

Marta Cruz

Comentários

Anónimo disse…
Muito bem escrito. Gostei imenso de ler.

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