Avançar para o conteúdo principal

Escrever um bom ensaio literário


Fonte: Unsplash


Já se percebeu que, por aqui, não subestimamos a escrita: a arte da palavra é difícil de domar sobretudo se tivermos em mãos a tarefa de escrever um ensaio literário. Escrever um bom ensaio (e há-os tão verborrágicos, tão adjectivados, cansados e longos como esta frase) pode ser desafiante. Por isso, hoje damos-vos alguns conselhos que podem ser úteis.

Antes de mais, a questão que se impõe é: como saber se determinado tópico é ou não válido para tratar num ensaio?

Escolher um problema, uma questão passível de ser argumentada — não um facto

Um ensaio literário não se trata de simplesmente discorrer sobre o livro X ou Y, resumir a história e/ou dar a tua opinião sobre ela (como por vezes fazemos aqui, em freestyle, na Escrivaninha). Escrever um ensaio implica fazer uma pergunta específica ao texto e ver como ele nos responde. Trata-se de escolher uma questão passível de argumentar.

Dizer, por exemplo, que Oliver Twist é a história de um órfão que viveu em meados do século XIX é uma descrição, um facto, não é uma questão passível de argumentação. Assim, é importante que distingas bem o que é factual em relação ao texto literário (estando fora da matéria do ensaio) do que é um argumento e, consequentemente, um bom tópico ensaístico. 

Agora, como identificar especificamente o teu tópico de ensaio? 

Bons tópicos de ensaio surgem da identificação de um mecanismo próprio de acção do texto, de um contraste flagrante entre personagens, de uma imagem, de um tropo obsessivo e, claro, da análise de como todos esses aspectos são tratados no texto, das nuances que adquirem e porquê. Afinal, quais as implicações de sentido de determinado aspecto do texto?

Podes fazer um brainstorming dos possíveis tópicos de ensaio dentro do teu tema, e depois eleger aquele que te parecer mais sólido e interessante.

Vejamos alguns exemplos de tópicos de ensaios literários (retirados do site Universidade de Cambridge):

«Discute a relação entre linguagem e poder em pelo menos dois textos sobre ditadura e porquê.»
«Discute se em Cem anos de solidão a saudade e o humor são inseparáveis de uma visão trágica da existência.»
«Discute a afirmação: "O casamento não proporciona uma conclusão clara nas novelas de Cervantes".» 

Escolhido o tópico (assumindo que já estudaste o texto literário em causa) está na hora de argumentar a favor da tua tese.

Argumentar

Depois de detetares a questão que vais tratar, deves focar-te nos diferentes elementos da narrativa: a estrutura, o ponto de vista da narração/a composição da voz sujeito poético, o vocabulário escolhido, a sintaxe, o tom, as imagens, as figuras de estilo, etc. 

Deves procurar perceber de que modo é que os elementos estilísticos abordam o teu tópico e quais as implicações desse tratamento para o desenvolvimento da tua tese. Podes também perceber quais poderão ser as objecções à tua tese e argumentar contra elas — só dará mais força ao teu argumento.

Durante este processo (e sobretudo depois dele) certifica-te de que há pontes entre os parágrafos (para isso, os conectores são essenciais), que explicas bem um ponto antes de passar ao seguinte, construindo uma cadeia lógica e forte de argumentos. Lembra-te sempre do ponto que estás a defender, pois só mantendo presente para onde nos dirigimos é que podemos conduzir todo o ensaio numa direcção clara, a passo decidido.

Assim, cada parágrafo do desenvolvimento, deve ter:

uma frase geral que resuma a ideia do parágrafo;
períodos que suportem, expliquem a ideia anteriormente referida;
exemplos e evidências textuais de cada uma dessas ideias;
a análise das implicações dos dados recolhidos nos exemplos que escolheste;
uma frase que faça a transição para a ideia do parágrafo seguinte, de modo a desenvolver o teu argumento, encandeando logicamente cada parte.

Concluir

Concluir de modo claro consiste em recuperar as ideias principais já defendidas em cada parágrafo do desenvolvimento (bem como cada pequena conclusão desses parágrafos) e voltar a reiterar a ideia principal, a conclusão (que como referimos idealmente se refere logo na introdução). Por outras palavras, resume o que já disseste e num tom mais categórico. 

No final, confirma se a «Santíssima Trindade» (introdução, desenvolvimento e conclusão) agracia o teu texto. 

Em todo o caso, não custa lembrar o que cada secção deve contemplar.

Introdução

• Introduzir o tópico a abordar, indo do geral para o particular, num parágrafo.
• Responder à questão que estrutura o ensaio, dizendo claramente que vais chegar à conclusão Y.
• Resumir o corpo do ensaio, explicando brevemente ao leitor as diferentes partes por que será constituído.


Desenvolvimento

• Iniciar a problematização, isto é, a discussão do tópico em causa.
• Mostrar um profundo conhecimento do tópico, validando a ideia que defendes.
• Munir-te de exemplos, como citações da obra em causa, e eventualmente de autoridades na matéria de que tratas, como certos críticos literários (se se adequar, claro. Por mero show-off não vale a pena).

Conclusão

• Reafirmar a tua conclusão, já referida na parte introdutória.
Resumir os principais pontos da argumentação (pensa neles como os sub-títulos das diferentes partes que compõem o corpo do texto).
• Eventualmente incluir um parágrafo sobre a possibilidade de estender o estudo da conclusão em futuras análises. (Mas, atenção: isto não equivale a acrescentar informação nova! Não é suposto que o faças no último parágrafo.)

Estes são andamentos aos quais não podemos fugir, mas a verdade é que, não raro, em ensaios literários, esses momentos se confundem numa amálgama opinativa nada clara. E ainda que a literatura carregue uma subjectividade que outras áreas não possuem, há que ser rigoroso. Afinal, não vale tudo e, recordando a máxima de um professor de faculdade, «Há interpretações mais correctas do que outras». Por isso, faz valer a tua interpretação, dando-lhe um esqueleto sólido.

Concisão, clareza e fluidez

Depois, e porque escrever com graciosidade e fluidez não é fácil, certifica-te de que cumpres os conselhos que se seguem.

Foge do excesso de adjetivos, que possa tornar o discurso, que deve ser rigoroso e científico, pessoal e intimista. O ensaio não é sobre a maneira como o texto te fez sentir, sobre se te identificas ou não com as personagens, se gostas ou não do autor... Essas são questões a ser tratadas num clube de leitura, entre amigos, mas não no espaço formal do ensaio literário. 

• Evita ser vago e fazer considerações do senso comum — como «Eça de Queirós foi um dos maiores escritores do Realismo português» —, que nada acrescentam à defesa do teu argumento e são digressões injustificadas.

• Corta o que for desnecessário e evita o uso de termos demasiado complexos. 

Revê o primeiro rascunho para eliminar erros, gralhas e aprimorar a pontuação. Lê em voz alta, de modo a detectar, eliminar e resolver cacofonias, frases pesadas e repetições que roubam leveza ao discurso. 

Boas leituras e bons ensaios!

Escrivaninha

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Nem só de "passado" se faz o adjectivo

  A  palavra “passado” — não o passado que passou, mas o adjectivo — é muitas vezes erradamente utilizada.  A culpa do erro? Atribuimo-la à confusão com uma outra classe de palavra: o advérbio , que  não  varia em género (masculino e feminino) e número (singular e plural).  Por causa deste quiprocó, dizemos muitas vezes “passad o ”, mesmo quando deveríamos usar “passada”, “passadas” ou “passados”,  conforme a expressão a que o adjectivo diga respeito. E sta confusão acontece apenas quando se usa o adjectivo num contexto temporal, isto é, com o sentido de  determinado tempo volvido,  já que a ninguém ocorre usar sempre “passado” noutros contextos, como: " A camisa foi mal  passado ."  " Quero os bifes bem  passado , por favor!", " A tarde e a manhã foram bem  passado ."  Toda a gente diz, e bem: A camisa foi mal  passada .  Quero os bifes bem  passados , por favor!  A tarde e a manhã foram bem ...

Homenagem em forma de pergunta, parte I

A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off. Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta. *** Sandra Cristina Fernandes Pera Médica de Medicina Geral e Familiar Sandra Fernandes 1) Porquê Medicina? Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: ca...

Eat that doubt

Desenho de Fuinha Ele, ao sol, vermelho como um erro.   Eu a vê-lo; a digladiar-me com os sórdidos detalhes.   Nem a benevolência da luz influía afinação na certeza.   Amor,   como a  súbita  chuva de verão,  começa prende-te a forma esquiva; estaca em quieta complacência.   Dentro duma jarra fica   como o cúmplice  estoico do segredo.   És a decisão   de quem segue repetindo    eat  that                  doubt                     ante a luz propícia, contra a investida de uma condição.     Março, 2019     Nota : Eat that question é o título de uma música de Frank Zappa,  que inspirou o título do texto.   Elsa   Escrivaninha