Escrever um bom ensaio literário


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Já se percebeu que, por aqui, não subestimamos a escrita: a arte da palavra é difícil de domar sobretudo se tivermos em mãos a tarefa de escrever um ensaio literário. Escrever um bom ensaio (e há-os tão verborrágicos, tão adjectivados, cansados e longos como esta frase) pode ser desafiante. Por isso, hoje damos-vos alguns conselhos que podem ser úteis.

Antes de mais, a questão que se impõe é: como saber se determinado tópico é ou não válido para tratar num ensaio?

Escolher um problema, uma questão passível de ser argumentada — não um facto

Um ensaio literário não se trata de simplesmente discorrer sobre o livro X ou Y, resumir a história e/ou dar a tua opinião sobre ela (como por vezes fazemos aqui, em freestyle, na Escrivaninha). Escrever um ensaio implica fazer uma pergunta específica ao texto e ver como ele nos responde. Trata-se de escolher uma questão passível de argumentar.

Dizer, por exemplo, que Oliver Twist é a história de um órfão que viveu em meados do século XIX é uma descrição, um facto, não é uma questão passível de argumentação. Assim, é importante que distingas bem o que é factual em relação ao texto literário (estando fora da matéria do ensaio) do que é um argumento e, consequentemente, um bom tópico ensaístico. 

Agora, como identificar especificamente o teu tópico de ensaio? 

Bons tópicos de ensaio surgem da identificação de um mecanismo próprio de acção do texto, de um contraste flagrante entre personagens, de uma imagem, de um tropo obsessivo e, claro, da análise de como todos esses aspectos são tratados no texto, das nuances que adquirem e porquê. Afinal, quais as implicações de sentido de determinado aspecto do texto?

Podes fazer um brainstorming dos possíveis tópicos de ensaio, dentro do teu tema, e depois eleger aquele que te parecer mais sólido e interessante.

Vejamos alguns exemplos de tópicos de ensaios literários (retirados do site Universidade de Cambridge):

«Discute a relação entre linguagem e poder em pelo menos dois textos sobre ditadura e porquê.»
«Discute se em Cem anos de solidão a saudade e o humor são inseparáveis de uma visão trágica da existência.»
«Discute a afirmação: "O casamento não proporciona uma conclusão clara nas novelas de Cervantes".» 

Escolhido o tópico (assumindo que já estudaste o texto literário em causa) está na hora de argumentar a favor da tua tese.

Argumentar

Depois de detetares a questão que vais tratar, deves focar-te nos diferentes elementos da narrativa: a estrutura, o ponto de vista da narração/a composição da voz sujeito poético, o vocabulário escolhido, a sintaxe, o tom, as imagens, as figuras de estilo, etc. 

Deves procurar perceber de que modo é que os elementos estilísticos abordam o teu tópico e quais as implicações desse tratamento para o desenvolvimento da tua tese. Podes também perceber quais poderão ser as objecções à tua tese e argumentar contra elas — só dará mais força ao teu argumento.

Durantes este processo (e sobretudo depois dele) certifica-te de que há pontes entre os parágrafos (para isso, os conectores são essenciais), que explicas bem um ponto antes de passar ao seguinte, construindo uma cadeia lógica e forte de argumentos. Lembra-te sempre do ponto que estás a defender, pois só mantendo presente para onde nos dirigimos é que podemos conduzir todo o ensaio numa direcção clara, a passo decidido.

Assim, cada parágrafo do desenvolvimento, deve ter:

uma frase geral que resuma a ideia do parágrafo;
períodos que suportem, expliquem a ideia anteriormente referida;
exemplos e evidências textuais de cada uma dessas ideias;
a análise das implicações dos dados recolhidos nos exemplos que escolheste;
uma frase que faça a transição para a ideia do parágrafo seguinte, de modo a desenvolver o teu argumento, encandeando logicamente cada parte.

Concluir

Concluir de modo claro consiste em recuperar as ideias principais já defendidas em cada parágrafo do desenvolvimento (bem como cada pequena conclusão desses parágrafos) e voltar a reiterar a ideia principal, a conclusão (que como referimos idealmente se refere logo na introdução). Por outras palavras, resume o que já disseste e num tom mais categórico. 

No final, confirma se a «Santíssima Trindade» (introdução, desenvolvimento e conclusão) agracia o teu texto. 

Em todo o caso, não custa lembrar o que cada secção deve contemplar.

Introdução

• Introduzir o tópico a abordar, indo do geral para o particular, num parágrafo.
• Responder à questão que estrutura o ensaio, dizendo claramente que vais chegar à conclusão Y.
• Resumir o corpo do ensaio, explicando brevemente ao leitor as diferentes partes por que será constituído.


Desenvolvimento

• Iniciar a problematização, isto é, a discussão do tópico em causa.
• Mostrar um profundo conhecimento do tópico, validando a ideia que defendes.
• Munir-te de exemplos, como citações da obra em causa, e eventualmente de autoridades na matéria de que tratas, como certos críticos literários (se se adequar, claro. Por mero show-off não vale a pena).

Conclusão

• Reafirmar a tua conclusão, já referida na parte introdutória.
Resumir os principais pontos da argumentação (pensa neles como os sub-títulos das diferentes partes que compõem o corpo do texto).
• Eventualmente incluir um parágrafo sobre a possibilidade de estender o estudo da conclusão em futuras análises. (Mas, atenção: isto não equivale a acrescentar informação nova! Não é suposto que o faças no último parágrafo.)

Estes são andamentos aos quais não podemos fugir, mas a verdade é que, não raro, em ensaios literários, esses momentos se confundem numa amálgama opinativa nada clara. E ainda que a literatura carregue uma subjectividade que outras áreas não possuem, há que ser rigoroso. Afinal, não vale tudo e, recordando a máxima de um professor de faculdade, «Há interpretações mais correctas do que outras». Por isso, faz valer a tua interpretação, dando-lhe um esqueleto sólido.

Concisão, clareza e fluidez

Depois, e porque escrever com graciosidade e fluidez não é fácil, certifica-te de que cumpres os conselhos que se seguem.

Foge do excesso de adjetivos, que possa tornar o discurso, que deve ser rigoroso e científico, pessoal e intimista. O ensaio não é sobre a maneira como o texto te fez sentir, sobre se te identificas ou não com as personagens, se gostas ou não do autor... Essas são questões a ser tratadas num clube de leitura, entre amigos, mas não no espaço formal do ensaio literário. 

• Evita ser vago e fazer considerações do senso comum — como «Eça de Queirós foi um dos maiores escritores do Realismo português» —, que nada acrescentam à defesa do teu argumento e são digressões injustificadas.

• Corta o que for desnecessário e evita o uso de termos demasiado complexos. 

Revê o primeiro rascunho para eliminar erros, gralhas e aprimorar a pontuação. Lê em voz alta, de modo a detectar, eliminar e resolver cacofonias, frases pesadas e repetições que roubam leveza ao discurso. 

Boas leituras e bons ensaios!

Escrivaninha

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