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Diálogos entre a prosa e a poesia — parte II


Dois lápis e um fundo amarelo

Fonte: Unsplash


 Rotinas

Prosa: Tive uma semana tão atarefada e intensa! Nem imaginas: aulas de step, idas à praia, piqueniques, viagens... Ufa! E o melhor? Nestas idas e voltas ficam a saber-se coisas! Sabias que o Jaime foi despedido da empresa onde trabalhava? E que a Patrícia se casou com o Eduardo, o coxo?

Poesia: Não atribuas essas categorias redutoras às pessoas... E, por favor... saí agora do yoga, ainda me sinto a levitar. Tem dó de mim. Não me satures com banalidades.

Prosa (pensando): É por essas e por outras que ninguém a atura...


Na perfumaria

Poesia: Não sei qual deles levar... o perfume ou o creme de mãos?

Prosa: Nem eu, cheiram todos tão bem... E a textura deste sérum

Poesia: E porque não levamos tudo?

Prosa: As más línguas vão-nos chamar «sinestésicas».

Poesia (sedutora): Ora, se os inebriarmos não nos chamarão nada...



Pratos favoritos

Prosa: Bacalhau com todos.

Poesia: Uma perfeita e cabal azeitona.


Looks

Poesia: Outro dia gabaram-me a capacidade de me reinventar.

Prosa: Sim, tem de se dizer que às vezes arrojas nos looks. Mas também acho que é por te renderes às opiniões alheias... Para dizer a verdade, não gostei muito daquela tua fase concreta, matemática, quando vieste do Brasil. Nem parecias tu... 

Poesia: Ora... foi uma experiência.

Prosa: Sempre arriscaste mais do que eu.

Poesia (mexendo nos cabelos, em tom jocoso): Minha cara, «tomando sempre novas qualidades...» 


Reclamação

Poesia: Entrou um rato para o quarto!

Prosa: Chama alguém, mata-o, faz alguma coisa!

Poesia: Oh... apesar de tudo... Não é senão uma criação menos aprimorada. 

Prosa: Deixa-te de eufemismos pá!

Poesia: Podia até dedicar-lhe um soneto... Uma coisa à «Poema Sujo»!

Prosa: Sê prática uma vez na vida, sim? E antes de saíres do hotel, no livro de reclamações, uma bela cantiga de escárnio e maldizer! 



Compositores preferidos

Prosa: Os grandes! Tchaikovsky, Prokofiev, Korsakov! Esses sim: contam uma história!

Poesia: John Cage (silêncio súbito). É preciso explicar?


Tortura

Prosa (batendo com as mãos no peito, indignada): Não posso com livros escolares! Querem trucidar-me? Eu, às postas!?

Poesia: Olha... eu já me habituei. E quando algum aluno de literatura me põe a mão é quase a mesma coisa... toda dividida, sublinhada, pintada de todas as cores, com apliques de notas aqui e ali. 

uma

pa

lha

ça

da!


Baile

Poesia: O que é isto? O que viemos aqui fazer?

Prosa: Não gostas? Um baile! Quis fazer-te uma surpresa!

Poesia: Escolheste mal! Estou cansada disto, já nem sei os passos!

Prosa: Anda lá! São só duas quadras cruzadas.

Poesia: Ainda para mais não me apetecia nada dançar com regras... Já nem sequer sei. Queria soltar os cabelos, improvisar... freestyle!

Prosa: Vá lá! Dançamos só esta! Vais ver que fazes isto com uma rima interna às costas.


Moda

Prosa: Um vestido com bordados elaborados, rendas, folhinhos! Tudo a que tenho direito!

Poesia: Com um soneto nunca me comprometo. 


No cabeleireiro

Poesia: Queria cortar muito. O mais sucinto possível, se faz favor.

Prosa: E eu hoje quero fazer um coque cheio de tranças. Vou a um casamento!

Poesia: Também te ficaria bem uma franja, não achas? Dava-te um ar mais discreto, misterioso até...

Prosa: Hoje não. É dia de festa! Não quero passar despercebida. Adoro casamentos! Aquela gente toda, os desfiles, as roupas, as danças! 

Poesia: É sempre a mesma coisa, sempre tudo da mesmíssima maneira... E os clichés que se dizem nesses dias...

Prosa: Apre! Sempre armada... a querer subestimar as convenções. Consegues ser normal? E o normal é tão sexy! (elevando o queixo).

Poesia(vai embora, displicente, com um verso branco).


Epitáfio?

Prosa: Já pensaste no teu epitáfio?

Poesia: Ainda não... já pensas nisso?

Prosa: Sinto que o meu fim se vaticina...

Poesia: Que disparate, amiga!

Prosa: Tu é que me queres eterna...

Poesia: Enquanto eu viver, tu também cá estarás, verás!

Prosa: Ora, deixa-te de rimas fatelas...

Poesia: É a métrica das coisas! Estás destinada a viver bons e largos anos...

Prosa: O mundo moderno não tem lugar para mim... É tudo instantâneo...

Poesia: E para mim tem? Tão densa que sou?

Prosa: Oh! Até te sabem de cor! Poucos mas bons!

Poesia: Eu sei. Mas tem esperança! Lembra-te daquele filme inspirado naquele livro (arrepiante!) em que as pessoas perdiam a identidade para te decorarem...

Prosa: Só mesma na ficção! Alguém dar a vida por mim? Essa está boa. 

Poesia: Oh, amiga... nem por mim. Na verdade, só me querem depois das necessidades repostas, ao calor da introspecção da lareira.

Prosa (abraçando a poesia): Mas ainda nos temos uma à outra... e juntas som...


Entretanto a prosa poética irrompe pela avenida.


Prosa: Será transgénero?

Poesia: Talvez... Não sei, mas que é bonita é.

Prosa: Leva o Orlando debaixo do braço...

Poesia: Isso não significa nada!

Prosa: Pois não, não... hum.... Não fui eu que disse! Deixa-me cá pôr um travessão nisto senão o Bloom ainda me tira do cânone. 


Irritações

Poesia (convencida): Todos aqueles que usam o meu nome sem autorização. Afinal, entre mim e um slogan vai alguma diferença.

Prosa (esbaforida)Se numa noite de inverno um viajante... Ai nem me digam nada. Querem ver que o leitor já manda? Aí o Italo ficou-me entalado. Não há paciência! Senti-me gozada. Menos, Calvino, menos! Tudo o que é demais é moléstia.



Elsa

Comentários

Anónimo disse…
Diálogo culto, elegante, actual e divertido. Eu só peço mais...
Anónimo disse…
Adorei !

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