Diálogos entre a prosa e a poesia — parte II
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Rotinas
Prosa: Tive uma semana tão atarefada e intensa! Nem imaginas: aulas de step, idas à praia, piqueniques, viagens... Ufa! E o melhor? Nestas idas e voltas ficam a saber-se coisas! Sabias que o Jaime foi despedido da empresa onde trabalhava? E que a Patrícia se casou com o Eduardo, o coxo?
Poesia: Não atribuas essas categorias redutoras às pessoas... E, por favor... saí agora do yoga, ainda me sinto a levitar. Tem dó de mim. Não me satures com banalidades.
Prosa (pensando): É por essas e por outras que ninguém a atura...
Na perfumaria
Poesia: Não sei qual deles levar... o perfume ou o creme de mãos?
Prosa: Nem eu, cheiram todos tão bem... E a textura deste sérum?
Poesia: E porque não levamos tudo?
Prosa: As más línguas vão-nos chamar «sinestésicas».
Poesia (sedutora): Ora, se os inebriarmos não nos chamarão nada...
Pratos favoritos
Prosa: Bacalhau com todos.
Poesia: Uma perfeita e cabal azeitona.
Looks
Poesia: Outro dia gabaram-me a capacidade de me reinventar.
Prosa: Sim, tem de se dizer que às vezes arrojas nos looks. Mas também acho que é por te renderes às opiniões alheias... Para dizer a verdade, não gostei muito daquela tua fase concreta, matemática, quando vieste do Brasil. Nem parecias tu...
Poesia: Ora... foi uma experiência.
Prosa: Sempre arriscaste mais do que eu.
Poesia (mexendo nos cabelos, em tom jocoso): Minha cara, «tomando sempre novas qualidades...»
Reclamação
Poesia: Entrou um rato para o quarto!
Prosa: Chama alguém, mata-o, faz alguma coisa!
Poesia: Oh... apesar de tudo... Não é senão uma criação menos aprimorada.
Prosa: Deixa-te de eufemismos pá!
Poesia: Podia até dedicar-lhe um soneto... Uma coisa à «Poema Sujo»!
Prosa: Sê prática uma vez na vida, sim? E antes de saíres do hotel, no livro de reclamações, uma bela cantiga de escárnio e maldizer!
Tortura
Prosa (batendo com as mãos no peito, indignada): Não posso com livros escolares! Querem trucidar-me? Eu, às postas!?
Poesia: Olha... eu já me habituei. E quando algum aluno de literatura me põe a mão é quase a mesma coisa... toda dividida, sublinhada, pintada de todas as cores, com apliques de notas aqui e ali.
uma
pa
lha
ça
da!
Baile
Poesia: O que é isto? O que viemos aqui fazer?
Prosa: Não gostas? Um baile! Quis fazer-te uma surpresa!
Poesia: Escolheste mal! Estou cansada disto, já nem sei os passos!
Prosa: Anda lá! São só duas quadras cruzadas.
Poesia: Ainda para mais não me apetecia nada dançar com regras... Já nem sequer sei. Queria soltar os cabelos, improvisar... freestyle!
Prosa: Vá lá! Dançamos só esta! Vais ver que fazes isto com uma rima interna às costas.
Moda
Prosa: Um vestido com bordados elaborados, rendas, folhinhos! Tudo a que tenho direito!
Poesia: Com um soneto nunca me comprometo.
No cabeleireiro
Poesia: Queria cortar muito. O mais sucinto possível, se faz favor.
Prosa: E eu hoje quero fazer um coque cheio de tranças. Vou a um casamento!
Poesia: Também te ficaria bem uma franja, não achas? Dava-te um ar mais discreto, misterioso até...
Prosa: Hoje não. É dia de festa! Não quero passar despercebida. Adoro casamentos! Aquela gente toda, os desfiles, as roupas, as danças!
Poesia: É sempre a mesma coisa, sempre tudo da mesmíssima maneira... E os clichés que se dizem nesses dias...
Prosa: Apre! Sempre armada... a querer subestimar as convenções. Consegues ser normal? E o normal é tão sexy! (elevando o queixo).
Poesia: (vai embora, displicente, com um verso branco).
Epitáfio?
Prosa: Já pensaste no teu epitáfio?
Poesia: Ainda não... já pensas nisso?
Prosa: Sinto que o meu fim se vaticina...
Poesia: Que disparate, amiga!
Prosa: Tu é que me queres eterna...
Poesia: Enquanto eu viver, tu também cá estarás, verás!
Prosa: Ora, deixa-te de rimas fatelas...
Poesia: É a métrica das coisas! Estás destinada a viver bons e largos anos...
Prosa: O mundo moderno não tem lugar para mim... É tudo instantâneo...
Poesia: E para mim tem? Tão densa que sou?
Prosa: Oh! Até te sabem de cor! Poucos mas bons!
Poesia: Eu sei. Mas tem esperança! Lembra-te daquele filme inspirado naquele livro (arrepiante!) em que as pessoas perdiam a identidade para te decorarem...
Prosa: Só mesma na ficção! Alguém dar a vida por mim? Essa está boa.
Poesia: Oh, amiga... nem por mim. Na verdade, só me querem depois das necessidades repostas, ao calor da introspecção da lareira.
Prosa (abraçando a poesia): Mas ainda nos temos uma à outra... e juntas som...
Entretanto a prosa poética irrompe pela avenida.
Prosa: Será transgénero?
Poesia: Talvez... Não sei, mas que é bonita é.
Prosa: Leva o Orlando debaixo do braço...
Poesia: Isso não significa nada!
Prosa: Pois não, não... hum.... Não fui eu que disse! Deixa-me cá pôr um travessão nisto senão o Bloom ainda me tira do cânone.
Irritações
Poesia (convencida): Todos aqueles que usam o meu nome sem autorização. Afinal, entre mim e um slogan vai alguma diferença.
Prosa (esbaforida): Se numa noite de inverno um viajante... Ai nem me digam nada. Querem ver que o leitor já manda? Aí o Italo ficou-me entalado. Não há paciência! Senti-me gozada. Menos, Calvino, menos! Tudo o que é demais é moléstia.
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