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Mensagens

A mostrar mensagens de 2019

O prédio

Ilustração de  Rita Sales Luís I — Mamã, eu mato-te! — era a declaração exagerada e agressiva da Cátia. Cátia nascera num «berço de ouro», mas agora, com trinta e poucos anos, zangava-se tempestivamente com a mãe e naquele dia ameaçava-a no terceiro andar do meu prédio. Narinas amplas e furiosas, a saliva borbulhando a chafurdar, depois gritos, o pérfido tratamento «Mamã!» e as queixas da mãe, em voz aguda, dirigidas ao céu: «Paizinho!». Depois da discussão entre ambas, a D. Amélia vinha ao nosso sexto andar contar o sucedido e, eventualmente, pedir algum favor. O meu pai fora durante alguns anos o presidente do condomínio do prédio, cargo que parecia tê-lo imbuído, mesmo findo esse período, de uma espécie de tácita responsabilidade para com os condóminos. E particularmente para com a D. Amélia, que sempre se insinuava amiga íntima da nossa família, assim como o seu cão, Boris, que entrava de rompante para as divisões mais recônditas da casa. A D. A mé...

Miss Quiche

Ilustração de João Maria Ferreira Hoje fizemos uma quiche.  Quiche  é uma palavra extremamente fina de ouvido. E fina de outras coisas também — que não é cá tripas ou rabo de boi, nem está para ser sequer feijoada, quanto mais chanfana. Parece, assim, redondinha de anca, com um cabelão compridíssimo, mas apanhado na nuca com um lencinho  burburry , uma palavra bonitinha que quer sempre estar montada em cima dos seus maravilhosos saltos agulha — a imagem de marca de uma moça de boas famílias que quer arranjar bom marido e estender a toalha ao sol nas praias da Comporta. Quíííchee! — grita a mãmã, muito desatinada porque a menina está deitada de corpo  danone  para o ar há já 20 minutos e ainda não se dignou a por um pinguinho de bronzeador, que assim não vamos a lado nenhum com esta história do ficar morena.  Quiche … Bem, digam lá o que disserem, há-de ser sempre uma tarte, e pouco mais do que isso. Mas o certo é que, desde que Lisboa incuti...

Um deus infernal e um verbo banal

Hades, o deus do Submundo. Fonte: imagem do filme da Disney “ Hércules” Este é um dos verbos quase sempre previamente condenados a arder num cenário dantesco quando abrimos a boca para o conjugar — especialmente na 2.ª pessoa do singular. Isto porque invocamos constantemente «Hades» — o terrífico deus do submundo — quando, na verdade, apenas queríamos, muito candidamente, dizer a inócua forma verbal  hás - de . Porque estamos todos cansados de ouvir este erro e, convenhamos, «Hades» não aguenta tantas solicitações, vamos à explicação. O verbo  haver , como bem sabemos, se conjugado como verbo principal tem apenas a 3ª pessoa do singular. Dizemos (e bem): « Houve  uma tempestade» e « Houve  várias tempestades».  Contudo, quando o verbo  haver  deixa o seu protagonismo e se verga ao posto de verbo auxiliar, a maioria de nós confunde-se, evocando o deus das almas perdidas do submundo e aproximando o nosso desejo de felicidade alheia...

Ter que estudar ou ter de estudar?

«Esta semana não posso ir jantar porque  tenho que …  de … estudar» Quantos de nós tivemos esta dúvida? Quase todos, provavelmente. E esta até é daquelas minimamente desculpáveis — se as houver —, por ser relativamente difícil de detectar e bastante frequente. Contudo, a vulgaridade de um erro não pode ser desculpa para o cometermos e, menos ainda, para não evitarmos cair nele. Assim, o que aqui importa estabelecer é que ambas as hipóteses estariam correctas, mas que  ter de  e   ter que   não são sinónimos e, por isso, não devemos ‘escolher’ utilizar uma ou outra como nos aprouver. Para começar,  ter de  usa-se na formulação  ter de  + forma verbal no infinitivo e significa «tem o desejo», «tem a necessidade», «tem a obrigação» ou «tem um determinado dever em relação a alguma coisa». Estes são os sentidos com que mais utilizamos o verbo  ter  — além de, claro está, quando este faz ref...

Entrar (ou não) em linha de conta

A palavra  conta  ocupa uma das mais longas entradas de dicionário que alguma vez li — como, aliás, poderão verificar em quase todos os dicionários que se lembrem de consultar. Sim, este substantivo feminino pode significar desde «o acto de contar», «importância de uma despesa», «dívida», «cálculo», «soma total» a uma «pequena esfera com um furo por onde pode ser enfiado um fio» — e isto só para listar alguns dos possíveis significados. Além disso, pode estar presente em inúmeras expressões como:  à conta de  («por causa de»),  afinal de contas  («afinal»),  fazer de conta  («fingir»),  dar conta do recado  («ser capaz de fazer algo»),  por conta própria  («independentemente») e  ter em conta  («ter em consideração»). Ora, é precisamente na linha do último exemplo que vem a expressão que hoje deu azo à minha curiosidade: Entrar (ou não) em linha de conta. Em tempos, houve quem estivesse — como...

Chamar a atenção ou à atenção

Na Escrivaninha, chamamos a atenção dos nossos leitores para os erros mais frequentes | Unsplash «Diz-se “chamar a atenção”, sem acento, ou “chamar à atenção”»? Quantas vezes esta dúvida não ecoa nas nossas cabeças — e quantas vezes nós não a ignoramos simplesmente porque um acento não fará mal a ninguém? Bem, antes de mais, façamos a ressalva: ter a dúvida não é vergonha nenhuma, mas ignorá-la talvez diga mais de nós — e sobre a nossa relação, tantas vezes descomprometida, com a nossa língua. Vamos então ver como é que um pequeníssimo acento grave pode provocar tamanha diferença, não só na realização fonética de cada uma destas expressões mas também, e sobretudo, no seu significado. Chamar a atenção  — onde o <a> é um artigo definido feminino (e uma vogal semiaberta) que precede o substantivo  atenção —  é uma expressão que significa «despertar ou atrair o interesse de alguém para alguma coisa», isto é, utiliza-se quando queremos dizer que «capt...

A queimadura

Ilustração de  João Maria A água fervia quando caiu no braço prático. De seguida, soou a reacção da boca com uma ordem. O braço direito foi, então, para o hospital («imagine-se», dizia a mente castradora) dentro de um  pirex  com água — porque não suportaria, de outro modo, os poros a gritar, intumescidos e furibundos, de dor. Na sala de espera, todas as bocas alheias se riram discretamente dele — havia-lhe dito o canto de um olho, que, de resto, nunca fora muito fiável, pelo pendor exagerado que sempre dava a determinados ângulos. De seguida, o braço teve direito a um comprimido rosa de compaixão e a um creme espalhado por mãos técnicas e cuidadosas. Como era de esperar, ao regressar a casa, o braço fez todos os pedidos que a uma vítima são devidos. Era, como muitos doentes, vermelho e raivoso (ainda) com o que lhe acontecera. Além disso, não estava senão habituado ao protagonismo que quase sempre se outorga a um braço direito: na escrita, no gesto, na...

Antes faça sol nas nossas cabeças

«Não pensei duas vezes, larguei o chinelo lá mermo e saí voado. O cana gritou na hora que ia aplicar. Passei mal, papo reto, fui correndo com o cu na mão, queria nem olhar pra ver qual ia ser. Lembrei do meu irmão, de nós jogando golzinho na rua. Ele era sempre o mais rápido, era neurótico na corrida. Eu tava correndo quase que nem ele, no desespero. Quase chorei de raiva. Eu sei que o Luiz não era X9, meu irmão nunca que ia xisnovar ninguém, morreu foi de bucha, no lugar de um vacilão desses daí que o mundo tá cheio. Isso sempre me enche de ódio. Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas...