O prédio

Texto de Elsa Alves



I
— Mamã, eu mato-te! — era a declaração exagerada e agressiva da Cátia.
Cátia nascera num «berço de ouro», mas agora, com trinta e poucos anos, zangava-se tempestivamente com a mãe e naquele dia ameaçava-a no terceiro andar do meu prédio. Narinas amplas e furiosas, a saliva borbulhando a chafurdar, depois gritos, o pérfido tratamento «Mamã!» e as queixas da mãe, em voz aguda, dirigidas ao céu: «Paizinho!».

Depois da discussão entre ambas, a D. Amélia vinha ao nosso sexto andar contar o sucedido e, eventualmente, pedir algum favor. O meu pai fora durante alguns anos o presidente do condomínio do prédio, cargo que parecia tê-lo imbuído, mesmo findo esse período, de uma espécie de tácita responsabilidade para com os condóminos. E particularmente para com a D. Amélia, que sempre se insinuava amiga íntima da nossa família, assim como o seu cão, Boris, que entrava de rompante para as divisões mais recônditas da casa.
A D. Amélia tinha modos de toupeira. Nos dias em que vinha ver-nos com o queixo inquisidor e ensaiados pretextos para companhia, espreitava indiscretamente para os compartimentos à vista, desde a porta de entrada de nossa casa. Mas, se íamos, por algum raro motivo, a casa dela, entrava rapidamente, fechando a porta atrás de si, num mesmo fluido movimento.
Adorava falar sobre as vidas alheias da cidade. Espalhava instantaneamente qualquer boato, admitindo-o perante os ingénuos confidentes, vaidosa: «E conta-me isso a mim? A mim, que conto tudo a todos?». Amiga e traidora solene já todos o sabiam, condenando-a, mas só assim gostando dela.
A indiscrição era bela na D.Amélia e dava-lhe um aspecto mais jovem. Querê-la recatada e comedida era querê-la moribunda. Uma vez perguntou à minha mãe se podia passar aquele e todos os serões, de todos os dias que se seguissem, em nossa casa — assim era a D. Amélia no pleno exercício da sua liberdade. A minha mãe respondeu: «Não, nem agora nem nunca» e que nos preparávamos precisamente naquele instante para ir jantar fora. A mentira era absolutamente necessária, porque tendo acedido ao pedido, ela espraiar-se-ia como um polvo, recostado no nosso sofá para sempre…
Porém, não seria esta pequena contrariedade a desligar-nos dela. A D. Amélia tinha connosco uma ligação visceral. Lidávamos com uma vizinha peculiar, tão entediante quanto comovente — sobretudo quando a Cátia a expulsou de casa, descalça. Nesse dia, acolhemo-la: almoçou connosco e demos-lhe uns chinelos para aquecer os pezinhos peculiares, o culminar de um tornozelo portentoso e de linhas muito rectas.
Preparava-se o meu pai para testemunhar contra a Cátia, quando o perdão e a condescendência impediram a D.Amélia de apresentar queixa da filha ingrata e feia: «Sempre fui mais bonita do que ela…» Nessa certeza residia, em parte, a desculpabilização pelos seus maus actos. De facto, em geral, a D.Amélia era especialmente benevolente para com a filha — chamava-lhe, pontualmente, «besta», mas continuava a mostrar, orgulhosa, a fotografia da pequena, de bochechas tenras e sobrolho, ainda, sereno.
Há relativamente pouco tempo tinha-me até pedido para lhe colocar como fundo de ecrã a foto da sua menina. Agora, porém, a expressão da Cátia tornara-se abjecta, e um antro de irritações invadia-lhe as ventas, particularmente quando se irritava.
A vez em que, no prédio, os vizinhos do primeiro andar almoçaram no terraço ocasionou um desses furibundos discursos: «Estes parolos vêm denegrir a imagem do prédio com estas churrascadas. Este era um prédio de gente com classe. E cala-te mamã, que se não for eu mais ninguém zela pela classe, pelo bom nome deste prédio.» E batia com as mãos no peito, para que dele espoletassem as palavras da honra e do decoro.
A Cátia adorava armar estrilho, provocar discussão e reclamar. Uma vez, estando por acaso perto de França, fez um desvio considerável da sua rota para reclamar aos laboratórios da marca Caudalie, por considerar que o seu frasco de creme não estava suficientemente recheado, havendo, segundo dizia, uma «absurda desproporção entre a embalagem e o conteúdo». A reclamação vingou e a Cátia recebeu um frasco de creme hidratante e anti age cheiinho até à tampa.
E como singrava sempre nas suas teimosias, o mesmo aconteceu quando pensara em casar. Ninguém que conhecesse a Cátia — com toda a sua antipatia e azedume, não sendo especialmente bonita — diria que ela se casaria. Contudo, o futuro ditou o contrário e um alemão chamado Richard hospedou toda a sua borbulhante essência.



II
Durante as vindas da Cátia e do marido à casa da D. Amélia havia sempre discussão e, logo a seguir, espevita, vinha ela ao nosso andar contar a cena com a ambivalência que lhe era característica. Ora vítima dos comentários maldosas da filha, ora líder, expulsando o Richard da sua casa, corajosa: «Rauz!» (rua, no seu «alemão»).
Porém, nem só sobre tempestuosas personalidades se erguia o prédio. Havia, felizmente, a candura e doçura dos bolos da dona Maria João do segundo andar. Preocupada em não incomodar, a dona Maria João não ofertava nenhuma iguaria sem pedir desculpa: ora era o recipiente que não se adequava, ora eram os bolos que não tinham bom aspecto. Havia sempre afectação no discurso: «Trouxe-lhe uns bolinhos. Olhe para o que me havia de dar… olhe para isto, sem jeito».
Um dia, a D. Amélia e a D. Maria João conjugaram esforços para escrever, em quadras, uma letra personalizada e dedicada à minha família, que viriam a cantar no dias de reis, depois de alguns ensaios. Nunca julguei que dois temperamentos tão díspares se conjugassem tão bem, em uníssono.
Já das terras de Quixote, vinha alguém com a vaidade, a destreza, o salero e o sotaque espanhol: a dona Ermínia, de 80 anos, uma exímia conversadora: «Dona Issssabel comprou una bimbi?», perguntara ela um dia vendo a minha mãe com um electrodoméstico nas mãos.
Certa noite azeda caiu de forma espalhafatosa — ela dormia com uma touca (certamente ofertada pela sua filha que era enfermeira), num traje bastante risível. A minha mãe tinha ouvido gritos desde o sexto, acudindo-a de imediato, apesar de a dona Ermínia já gritar há umas boas horas. A partir desse dia a dona Ermínia ficou eternamente grata à minha mãe, dizendo sempre que por ela passava: «Gracias dona Issssabel».
Apesar desse incidente, no dia seguinte, a dona Ermínia era, de novo, e como sempre, a velhota mais composta da cidade. Ali a víamos, alternando entre o corpo espalmado, imóvel e queixoso com aquela mulher arranjada, repleta de base, blushbatôn e movimentando-se pelas ruas, num casaco de peles, acompanhada da filha, Tilinha.
Havia ainda o Feliciano, galã domingueiro que se pavoneava pela avenida onde ficava o nosso prédio. Tinha uma amante flagrante que escondia da mulher gorda e coxa — que deixava o carro durante muito tempo ligado na garagem, acumulando monóxido de carbono, enquanto passava os olhos por uns quantos papéis. Ainda para mais, a filha de ambos, Carlota, chefiara um gang que roubara o padre de Outeiro (uma aldeia das redondezas) mas, agora, inofensiva e sorridente, redimia-se vendendo bugigangas numa barraca, na feira medieval.
A vizinha do primeiro andar era a «Dorinha». Baixa, e extremamente magra, com uma anca larga e um queixo agudo, em forma de gancho. Acumulava dívidas de condomínio, com uma indiferença e uma simpatia que quase as faziam esquecer. Uma vez, ainda em pequena, ofereceu-me uma caneca original: a asa era o pescoço de uma girafa cujo padrão do corpo se estendia pelo resto da caneca. Dizia que me faria a colecção daquelas canecas… mas remeteu-se ao incumprimento, como das promessas de pagamento feitas ao condomínio.
Depois, havia vizinhos que não conhecia tanto, afigurando-se modelações estéticas de um aspecto específico: a advogada que repetia constantemente a palavra «efectivamente», fazendo-me até hoje considerá-lo um termo dispensável, ou o senhor Ruivo: rico, com vários carros, várias casas e muitos filhos, e um rosto e expressão que lembravam ligeiramente Jean Paul Sartre.
Erguido sobre fundações trágico-cómicas, dotado do protagonismo que a principal avenida da cidade lhe conferia, o meu prédio e os seus vizinhos eram tão memoráveis quanto a Humanidade.

Elsa Alves

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