Avançar para o conteúdo principal

Miss Quiche

Quiche, desenho de João Maria Ferreira
Ilustração de João Maria Ferreira

Hoje fizemos uma quiche. Quiche é uma palavra extremamente fina de ouvido. E fina de outras coisas também — que não é cá tripas ou rabo de boi, nem está para ser sequer feijoada, quanto mais chanfana. Parece, assim, redondinha de anca, com um cabelão compridíssimo, mas apanhado na nuca com um lencinho burburry, uma palavra bonitinha que quer sempre estar montada em cima dos seus maravilhosos saltos agulha — a imagem de marca de uma moça de boas famílias que quer arranjar bom marido e estender a toalha ao sol nas praias da Comporta.
Quíííchee! — grita a mãmã, muito desatinada porque a menina está deitada de corpo danone para o ar há já 20 minutos e ainda não se dignou a por um pinguinho de bronzeador, que assim não vamos a lado nenhum com esta história do ficar morena. Quiche… Bem, digam lá o que disserem, há-de ser sempre uma tarte, e pouco mais do que isso.
Mas o certo é que, desde que Lisboa incutiu esta palavrita malandra no meu vocabulário — e que eu levei anos a assimilar –, toda a labrega experiência de comer uma fatia de tarte se transformou numa não melhor, mas mil e uma vezes mais esguia (e pretensiosa), experiência gastronómica de devorar, com pequenas dentadinhas controladas, uma requintada fatia de quiche digna dos melhores restaurantes.
Gente! É uma tarte feita à base de ovos. Quão sofisticada pode ser uma tarte, ou, melhor dizendo, uma torta, que no fundo é a tradução correcta para a palavra alemã kuchen — de onde, de facto, vem esta nossa quiche que, antes de ser nossa, foi francesa — razão pela qual até aceitamos a chiqueza deste prato.
Pois bem, lá está a menina deitada na toalha de praia colorida, com o seu corpito moreno e imaculado, de seios firmes e empinados para o sol, deixando escorrer gotas de bronzeador e transpiração pelo decote, enquanto deixa cozer os ovos naquela frigideira respingada de areia. A mãe está na água e o sol arde com força, deixando a piedade para outro dia e fazendo do bronze um trabalho verdadeiramente duro e monótono que só alguns são capazes de aguentar.
Cansada, a menina apoia-se nos antebraços agitando só ligeiramente os peitinhos muito rijos, fazendo subir o pescoço e rodando a cabecinha morena à procura da mãe. Há várias outras quiches pela praia, quase todas acompanhadas pelas suas mamãs, já não tão joviais. Bem vistas as coisas, todas parecem ter mais ou menos os mesmos ingredientes: têm ovos, algumas vegetais, outras carnes e queijo, e mais uns ovos para não faltar consistência ao pitéu.
A chatice é quando falta sal. Ninguém gosta de gente desenxabida.
Tring! Entretanto, habemus quiche.
Marta Cruz

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Nem só de "passado" se faz o adjectivo

  A  palavra “passado” — não o passado que passou, mas o adjectivo — é muitas vezes erradamente utilizada.  A culpa do erro? Atribuimo-la à confusão com uma outra classe de palavra: o advérbio , que  não  varia em género (masculino e feminino) e número (singular e plural).  Por causa deste quiprocó, dizemos muitas vezes “passad o ”, mesmo quando deveríamos usar “passada”, “passadas” ou “passados”,  conforme a expressão a que o adjectivo diga respeito. E sta confusão acontece apenas quando se usa o adjectivo num contexto temporal, isto é, com o sentido de  determinado tempo volvido,  já que a ninguém ocorre usar sempre “passado” noutros contextos, como: " A camisa foi mal  passado ."  " Quero os bifes bem  passado , por favor!", " A tarde e a manhã foram bem  passado ."  Toda a gente diz, e bem: A camisa foi mal  passada .  Quero os bifes bem  passados , por favor!  A tarde e a manhã foram bem ...

Homenagem em forma de pergunta, parte I

A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off. Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta. *** Sandra Cristina Fernandes Pera Médica de Medicina Geral e Familiar Sandra Fernandes 1) Porquê Medicina? Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: ca...

Eat that doubt

Desenho de Fuinha Ele, ao sol, vermelho como um erro.   Eu a vê-lo; a digladiar-me com os sórdidos detalhes.   Nem a benevolência da luz influía afinação na certeza.   Amor,   como a  súbita  chuva de verão,  começa prende-te a forma esquiva; estaca em quieta complacência.   Dentro duma jarra fica   como o cúmplice  estoico do segredo.   És a decisão   de quem segue repetindo    eat  that                  doubt                     ante a luz propícia, contra a investida de uma condição.     Março, 2019     Nota : Eat that question é o título de uma música de Frank Zappa,  que inspirou o título do texto.   Elsa   Escrivaninha