Hamlet — uma merecida ovação ao filho do meio
O ciclo «Três Comédias, Três Tragédias» já é um evento anual para muitos dos que frequentam o Teatro do Bairro, para os apaixonados por William Shakespeare e até para os que não tiveram o privilégio de ler — ou ver encenada — toda a sua obra.
Sim, depois do sucesso da sua interpretação de Noite de Reis, Sonho de Uma Noite de Verão e Muito Barulho Por Nada, o filho do meio já nos habituou a deixar esta ida ao teatro marcada na agenda. E eu que o diga: fui de viagem durante um mês, mas não sem antes deixar reservados quatro lugares para começar 2020 ao som de Hamlet, um dos textos dramáticos mais conhecidos de sempre.
Reparem, não pode ter sido tarefa fácil. E por dois motivos. Primeiro, porque este ciclo encenado por Luís Moreira — que leva a palco uma peça por ano desde 2017 — começou por nos dar a sentir três peças em tudo muito diferentes de Hamlet, da estrutura ao tom, não fossem as primeiras comédias e Hamlet uma das melhores tragédias de Shakespeare. Transitar de Muito Barulho Por Nada — que, em 2019, deixou os espectadores lavados em risos — para Hamlet — a trágica história de um reino da Dinamarca contaminado pelo fratricídio, corroído pelo incesto e pautado pela vingança, não pode ser pêra doce. Segundo, porque o colectivo filho do meio correria sempre o risco de que o público — sim, porque neles nós confiamos — visse neste intento uma certa arrogância por querer levar a palco uma história que toda a gente acha que já conhece.
Ora, nenhuma destas questões foi um problema. Quando se conta com uma tradução livre como a de Fernando Villas-Boas — a quem pedimos, desesperadamente, que nos empreste a suavidade da sua caneta — e uma encenação como a de Luís Moreira — a quem aplaudimos o quente discurso de acolhimento do espetáculo e as várias escolhas diferenciadoras que não nos atrevemos a revelar —, não há como não ter salas cheias e corações tocados por uma interpretação de Hamlet em tudo atual, mas em nada política (o que, diga-se, é muito raro nos dramas que sobem ao palco em Portugal).
Para nosso não tão grande espanto, Hamlet vem, mais do que nunca, realçar o mote do filho do meio e provar que Shakespeare é, de facto, «para todos». Não, assistir a esta produção não nos obriga a conhecer a peça em antemão, a estar familiarizado com a estrutura da tragédia ou a conhecer os meandros da vida e obra do dramaturgo britânico. O que este talentoso grupo faz é contar-nos a história sem assumir que ela vive na nossa memória e, ainda por cima, fá-lo sem medo de nos mostrar que numa tragédia não faltam situações mais do que risíveis! O meu conselho é que não se prendam a etiquetas quando assistirem a Hamlet — algo me diz que o filho do meio é especialmente apologista da espontaneidade dos seus espectadores.
Mas, sejamos justos: pouco ou nada se faria de palavras tão docemente trabalhadas e de uma encenação tão cuidadosamente deixada ao descoberto sem um elenco primoroso e uma equipa técnica cujos nomes já ressoam tanto quanto os dos actores.
No palco, pelo esbelto cenário e nos elegantes figurinos criados pela equipa de Maria Gonzaga, passeia-se uma Ofélia (Alice Medeiros) que vai de queixosa a lunática, um Cláudio (André Pardal) com uma seriedade repleta de ironias, uma Gertrudes (Rita Loureiro) cuja altivez esconde a aflitiva culpa que carrega, um Rosencrantz (José Matos de Oliveira) e um Guildenstern (Valter Teixeira) que, pela postura e máxima servilidade, são tão cómicos quanto trágicos. E, claro, um Hamlet que sabíamos que só podia ser interpretado por Luís Lobão — cara a que o filho do meio já nos habituou —, cuja crescente alienação lhe assenta como uma luva e a quem elogiamos a manifesta entrega com que interpreta a personagem.
É ainda digno de menção o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e da Fundação GDA ao filho do meio, o que, finalmente, vem confirmar a singular qualidade da produção, encenação e representação deste colectivo.
Peço-vos que confiem em mim, que não sei nada de teatro, que não sou paga para dizer coisas boas sobre esta gente e que morro de medo de ler uma linha em palco. Não é preciso ser-se um perito para admirar quem nos oferece trabalho descomplexado e de alta qualidade. E a prova disso é que ainda bem que fui previdente e reservei bilhetes, já que as duas primeiras semanas esgotaram num piscar de olhos e a terceira para lá caminha. A vossa sorte é que Hamlet vai estar no Teatro do Bairro até dia 2 de Fevereiro!
Texto: Marta Cruz
Edição: Elsa Alves
Hamlet
De 8 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 2020 | Teatro do Bairro (Rua Luz Soriano 63, 1200–246 Lisboa)
Quarta a Sábado — 21h30 | Domingo — 17h00
Quarta a Sábado — 21h30 | Domingo — 17h00
Reservas (Teatro do Bairro) 213 473 358 | 913 211 263 | 914 114 366| filhodomeio.teatro@gmail.com