A criança fora da infância (I)
A criança começou a sair da infância depois de uma aula. O professor tinha feito um aparte na matéria, dizendo: «Todos nós seríamos, obviamente, capazes de dar a vida pelos nossos pais». Depois desta afirmação, «a criança não pôde mais coincidir plenamente com a infância».
Ainda por cima, os outros colegas concordaram prontamente. Só ela ficara concreta na postura, perplexa durante o recreio, esquecida do lanche e de brincar, longe desse estado de distracção em que nada parece premeditado: a infância. E tudo por causa da afirmação do professor, latejando, ainda, na sua cabeça, durante o recreio.
Que ideia tão estranha: nunca antes se havia debatido com uma pergunta tão grave. Imaginava-se tentando salvar os pais de um eventual desastre, dando por eles a vida — ao mesmo tempo que duvidava fortemente da sua capacidade de suportar dor. E, no entanto, não deixava de considerar que deveria estar apta a passar por uma qualquer provação — afinal, fora o professor quem o dissera.
Sentia-se, porém, ridícula perante esse cenário que parecia pedir uma figura maior, um corpo mais amplo do que aquele corpo de sete anos. Porque dissera ele tal coisa?
Declarar «dou a vida pelos meus pais» num desses dias de sol e alento, nos quais não nos lembramos sequer de que vamos morrer, parecia-lhe muito leviano da parte dos colegas, que, nas horas seguintes, se distraíram com corridas desprendidas, o corpo entregue ao ar por entre lances de bola e saias causando percalços ao vento.
Enquanto percebia o modo como os outros tinham ignorado a frase do professor, conseguia também avistá-lo — ao autor dessa frase do acaso. Estava sentado num banco, juntamente com outros, bebendo uma chávena de café com prazer, descomprometido com o que dissera, rindo fartamente, falando com uma dicção clara, trazendo certeza ao discurso, gesticulando muito. Que perversidade a sua, deixá-la naquele impasse, sem esclarecer aquela questão que a atormentaria para sempre.
A criança olhava em redor, mais longe, para todo o recreio. Todos prosseguiam com o seu corpo e acções levezinhas, enquanto ela insistia em pensar continuamente naquela questão.
De súbito, reparou no carro vermelho do pai a surgir no horizonte breve da escola. Ver aquele ponto vermelho a crescer na paisagem era sempre um momento feliz. Mas hoje, como se uma terrível compreensão de tudo se avizinhasse, hesitou nos passos até ao confronto com o pai.
Caminhou devagar, tentando sair daquele estado que lhe parecia pouco normal, mas não conseguia. Enquanto entrava no carro, sentia que o corpo não lhe pertencia, como se os pensamentos a impedissem de manejar os membros. No caminho de regresso a casa observou longamente o pai como se o quisesse compreender por inteiro. Respondeu às suas perguntas quotidianas, perdendo-se na estranha sensação de possuir uma audição e uma observação nunca antes tão intensas, como se se tornasse um bicho apurado.
Chegou a casa atordoada, dando à mãe um beijo lasso, que ela, tão bem conhecendo a filha, estranhou: «O que é que tens?». A menina não soube nomear aquele estado, encolhendo apenas os ombros com infantilidade, como se não se tratasse de um gesto perfeitamente calculado.
Tinha consciência de estar sozinha perante aquele pensamento e sentia-o como uma injustiça. O professor tinha sido negligente. Qualquer outro adulto ter-se-ia apercebido disso e, contudo, não podia, a nenhum custo, revelar aos pais o que a preocupava, sob pena de ser considerada uma filha ingrata.
Foi a muito custo que passou os olhos pelos livros e fez as tarefas da escola, sem por um momento sequer a sórdida pergunta se ter afastado de si. Durante o jantar, olhava com atenção e método para os pais, tentando ver como eram, então, as feições do amor que lhes tinha, desenhar a presença daquele sentimento que se assinalava sem se revelar.
Na sala, ao serão, persistia nesse esforço, continuando envergonhada da dúvida que a cobria e, ao mesmo tempo, estranhamente certa de que eram indícios do amor a comoção sentida ao olhar os olhos do pai sob os óculos redondos e a compulsão de cair nos braços sardentos da mãe, embebendo-se naquele cheiro vago e adocicado entre as concavidades do seu pescoço — para adormecer, depois, enquanto auscultava no assobio do pai, o vento todo.
Mas, ainda assim, porque não conseguia responder nos dias que se passaram em ânsia e suspensão, entre a escuridão do quarto, em que tudo se tornava terrífico, lento? A pergunta «És capaz de dar a vida pelos teus pais?» sentava-se ao lado da sua cama como uma tia ríspida, pesando sobre ela, obrigando-a ao sono e durante o sono corroendo a maciez dos seus ossos de criança. Só de manhã, a resgatava a voz doce da mãe, pedindo que se levantasse.
Ao acordar, tinha o corpo suado, como se durante a noite tivesse ultrapassado uma prova física, como se músculos e tendões se tivessem firmado sob a pele imberbe. À frente do espelho intrigava-se com o seu próprio rosto, que parecia ter, durante a noite, mudado. E notava algumas transformações. Talvez tivesse pensado tanto naquela pergunta que todo o seu corpo a tinha, também, acompanhado.
As suas mitigadas feições pareciam transformadas. As sobrancelhas tinham-se tornado mais sérias e o seu arco mais peremptório; os pêlos mais densos, os cabelos mais longos e grossos, os ouvidos maiores, mais torneados os caminhos até aos tímpanos e mais salientes os seus olhos. E ouvia intensamente as palavras da mãe e do pai, que se impunham desde a cozinha, com clareza.
Como se as palavras só agora se inaugurassem, abalando o seu corpo, dotado de membros que, durante a noite, se pareciam ter expandido longamente, tornando-se desengonçados para o seu crânio, entretanto fortalecido, tomado de novas estruturas que lhe roubavam a agilidade.
Parecia que o rubor antigo dera lugar a uma certa amarelidão. Não teria a mãe dado conta de todas aquelas mudanças? E como poderia ir assim para a escola? Tornar-se-ia, algum dia, visível alguma saliência, alguma mancha esquisita no corpo, uma pista que denunciasse aquilo que no pensamento ocupava tanto espaço? E se se estendesse para lá do seu corpo alguma evidência do que só ela sabia? E se inchasse simplesmente por pensar? Ou se a pergunta viesse ter com ela?
Elsa Alves
* Verso de «Algumas proposições com crianças», Ruy Belo
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