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O Enredo Conjugal, de J. Eugenides

The Marriage Plot

No momento em que escrevia este texto, acabava de pousar o Kindle junto a uma pilha de livros que há anos habitam a mesa de cabeceira da minha adolescência. Esse contraste, penso, representa não só duas eras diferentes, mas também duas Martas diferentes: a Marta que volta e meia consegue ser menos angustiada e mais ávida e, em viagem, rende-se à biblioteca do Kindle porque nela pode arrumar tantos livros quantos quiser; e a Marta que não dispensa a biblioteca física da sua casa, que leva anos sem se lembrar dos livros que tem (e, por vezes, de onde estão) e que só peca por não poder carregar todo o peso das estantes nas mochilas com que anda. 

Dava por terminado O Enredo Conjugal (2011) — The Mariage Plot —, de Jeffrey Eugenides, que encostara levemente junto a Emma, de Jane Austen, o que não deixa de ser uma coincidência menos engraçada do que a sensação de que, como todas as coincidências, esta também estava quase destinada. 

Bom, eu explico. O Enredo Conjugal é um romance que explora as limitações das histórias de amor do século XIX, provando como, agora, elas seriam praticamente impossíveis de dar a ler pelo simples facto de que os romances que hoje vivemos não avançam nos dois momentos que então marcavam as histórias de amor oitocentistas—pautadas, primeiro, pela corte do homem à mulher e, depois, por todas as regras e processos (e, por vezes, acidentes) que os levariam ao altar. 

O que Jeffrey Engenides trabalha neste romance é a nossa incapacidade de hoje conceber este tipo de enredo conjugal — que, nos estudos literários até virou termo técnico, precisamente por ter transformado em entretenimento as dificuldades das mulheres da classe média-alta e o seu envolvimento nas épicas batalhas do amor em comédias de costumes, introduzidas ao mundo por Jane Austen, pelas irmãs Brontë, por George Elliot, entre outras. Ora, o mundo em que vivemos é profundamente diferente daquele em que escreveram essas autoras.

Hoje há casamentos entre pessoas do mesmo sexo, há feminismo e emancipações, há divórcios rápidos e até anulações de casamentos, há filhos fora do casamento, há mulheres em cargos «de homens» e, sobretudo, há muita pressa em viver-se uma história de encantar que pertence a outra era e que, de forma nenhuma (ou em raríssimas circunstâncias), parece ter sido feita à medida do mundo em que vivemos.

Eugenides ilustra precisamente essa desconstrução do enredo conjugal dos séculos XVIII e XIX através de um triângulo amoroso que não podia desmistificar melhor esta nossa ânsia por seguir um caminho que não se adequa à nossa época. Mas se, devo admitir, a história não me surpreendeu nem me deixou com particular vontade de confiar no amor (o que talvez diga mais sobre mim do que propriamente sobre o livro), é absolutamente inquestionável o quão bem o autor define e trabalha as três personagens que o compõem. 

Madeleine Hanna é a protagonista que se vê entre dois rapazes abissalmente diferentes e que nunca admite estar constantemente a tentar por mão na sua vida e conduzir em sentido contrário. É uma aplicada aluna de estudos ingleses, fascinada com Austen e Elliot e sobre cujo enredo conjugal — neste que é um toque metaliterário de Eugenides —, escreve a sua tese de fim de curso), vinda de uma família carregada de particularidades que a própria Madeleine não é capaz de ver.

Já Leonard é o carismático «double major» por quem ela se apaixona, com quem deseja viver uma vida de amor devoto (mas forçado). Contudo, por muito inteligente e bem parecido que seja, Leonard vive em função de um distúrbio maníaco-depressivo que pauta todos os seus comportamentos (os bons e os menos bons) e em cuja montanha-russa Madeleine se vê presa. 

Por fim, Mitchell — talvez a minha personagem favorita d’O Enredo Conjugal — é um aluno de estudos religiosos com uma grande tendência para o misticismo e que, apaixonado por Madeleine, vive em função dos atributos que ela não lhe reconhece, embora seja também a única personagem que parece ganhar alguma clarividência com o sofrimento que isso lhe causa. Carregada de urgência e de dualidades que lhe pesam, esta personagem volta a surgir em «Air Mail», no mais recente livro de short stories do autor — Fresh Complaint (2017) —, história em que Mitchell procura evitar a dura realidade do seu contexto amoroso, familiar e profissional d'O Enredo Conjugal, entregando-se a uma série de «epifanias» só possíveis devido à fragilidade do seu corpo desidratado e enfraquecido por parasita intestinal qualquer.

O Enredo Conjugal lembra-nos que não vale a pena procurar seguir um caminho que não é o nosso. Menos ainda num mundo progressista (e acelerado) em que vivemos. E, na verdade, se é para sermos progressistas numas coisas porque não sê-lo também noutras? No nosso tempo, mais vale não nos sabotarmos porque está visto que viver na nossa pele com a cabeça nos romances oitocentistas são coisas incompatíveis... 

Marta Cruz

Comentários

Anónimo disse…
Óptimo!

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