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Trás-os-Montes: o rural e o reverso


Quadro de Nadir Afonso
Obra de Nadir Afonso, pintor natural de Chaves.

Que região tão contida no perímetro de um preconceito, bem como o povo (de buço, sem instrução) que, dizem alguns, fala a cantar e diz, dizemos, as sílabas todas: Trás-os-Montes. Sabemos já do nevoeiro no âmago do Inverno, das estradas torneadas à volta da montanha no caminho para as aldeias; das estalactites de gelo ao longo do caminho; de uma ou outra raposa, às vezes, um javali, se estivermos atentos; dos tons de castanho e de verde da paisagem.

Esse, um dos lados de Trás-os-Montes. Os meus avós são a metonímia dessa ruralidade: os tempos de muito trabalho (lembro o epíteto de «bichos da palha», ganho pelo avô, Alípio, pelo seu cunhado, Arnaldo) depois da célere manhã de ceifa. Com eles, a minha avó Zelinda e a sua irmã Dora (nomes que se perderão), com pouco receio dos guardas franquistas, se completa o grupo dos protagonistas de histórias do trelo: o contrabando.

A agricultura, o acomodar dos animais. As vacas, nomeá-las, vigiá-las no pasto. As casulas com butelo, o fumeiro, fazê-lo e esperá-lo, o privilégio de ir à horta e tirar uma couve directamente para a panela; oferecer tudo aquilo que sobejava, apanhar castanhas, plantar castanheiros. As expressões roubadas à vizinha Galiza, o «bô», o «meu filho», o «m’im secalheira estás» (a insistência, à mesa, para que se coma) — um manancial de expressões, de regionalismos, de costumes.

Também as histórias que se acomodam num ambiente macabro, em que tantas vezes o Diabo ou a Morte se abeiram das pessoas entrando na ingenuidade da cabra ou pela sedução da mulher — enredos da tradição oral que Alexandre Parafita fixou. Os caretos, agora património da Humanidade, e muito mais.

Mas se cultura é tanto o folar de carnes como um conto do Torga, parece faltar falar dessa outra cultura transmontana, mais intelectual, mais artística. Tende-se a ver, com condescendência, só a ruralidade, os costumes, o bucolismo da paisagem — ainda que cantá-la, sobretudo agora, depois de todas as desconstruções por que a arte já passou, me pareça legítimo e necessário. Mas ele há muito mais.

Em lugar de sempre e só perpetuar a ruralidade e as montanhas, falta lembrar melhor e mais vezes as figuras da cultura: escritores como Guerra Junqueiro, Trindade Coelho, Miguel Torga — mais do que o Torga dos poemas, o Torga dos diários, dos contos (que há de bucólico na figura tétrica do «abafador»?)

Importa regressar a pintores como Graça Morais e Nadir Afonso, nome maior da Abstracção em Portugal, (e tão longe da ruralidade), colaborador do arquitecto Le Corbusier e autor de uma teoria de pintura baseada no rigor matemático. Falta lembrar os seus temas, as peculiaridades das suas obras. 

Importa celebrar e divulgar novos talentos — como o da jovem cantora Emmy Curl (Catarina Miranda) — em vez de manter o estereótipo do buço das mulheres do Norte. Falta falar mais vezes do reverso da ruralidade transmontana: do outro lado da cultura, da originalidade de cada artista aqui nascido, do modo como imaginam e retratam Trás-os-Montes e o mundo. 

Elsa 


Comentários

Anónimo disse…
Magnífico!!!
Anónimo disse…
Adorei!!'
Unknown disse…
Magnífico, minha querida sobrinha/afilhada...Parabéns.😘😘
Familia Salgueiro disse…
"Estalactites no coração de quem ama e dá"
Familia Salgueiro disse…
"Estalactites que nascem no coração de quem ama e dá"
Unknown disse…
Obrigada por todos os vossos comentários! Por algum motivo, não estamos a conseguir responder individualmente, mas lemos todos eles :)

Escrivaninha

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