Escrever, memórias de um ofício, de Stephen King
Stephen King, nascido a 1947 em Portland, Maine, nome maior do terror na ficção.
Sobre as suas obras, numa entrevista a Charlie Rose, dizia Harold Bloom não serem verdadeira literatura — a par das obras de J. K. Rowling, da colecção Harry Potter. No mesmo programa, noutro episódio, dois outros professores de literatura contrariavam o estudioso, dizendo que o autor do Cânone Ocidental era snob, pois apesar de as obras destes autores não se integrarem na mais erudita literatura, eram histórias verosímeis, cativantes e bem escritas.
Polémicas à parte, a verdade é que até aqui eu não lera nenhum livro de S. King. E, talvez devido à curiosidade que nos impele a indagar o ambiente à volta da escrita, as rotinas de um escritor, os motivos da escrita, comecei por Escrever. Nele, com sensibilidade e humor, S. King conta-nos o seu percurso de vida e de escrita: desde a persistente inflamação de ouvidos que o perseguia em miúdo, passando pelas cartas de rejeição dos contos de terror que enviava para revistas literárias, pela vida adulta, marcada pelo vício do álcool e da cocaína, até à vida familiar.
S. King, que conheceu a sua mulher, Tabitha King, na biblioteca da escola, tornou-se um convicto homem de família. Aliás, sobreviver ao atropelamento por uma carrinha, a meio de 1999, e manter o casamento, diz, foram os pilares da escrita, que por sua vez, sustinha a família.
Era na pacatez do lar, entre mimo, ainda a recuperar das mazelas do acidente, suportando o calor do verão com uma ventoinha e a bebida fresca que a mulher lhe trazia, que escrevia as suas histórias de terror, aqueles que o haviam de celebrizar. Mas, sobre o percurso até à fama, leiam e percebam como foi desafiante e moroso.
Escrever é um livro que certamente agradará àqueles que gostam de ler biografias e àqueles que se interessam pela demanda por um lugar no mundo da escrita de ficção. O capítulo «Caixa de Ferramentas» é particularmente interessante para quem tenha intenções sérias de se dedicar ao ofício. Aqui, King dá conselhos práticos absolutamente generosos, com explicações (bem-humoradas) e exemplos do que considera serem bons e maus usos da língua, como se nos sussurrasse ao ouvido enquanto escrevemos. Fala-nos, por exemplo, da sua birra com a voz passiva:
«Imagine por exemplo que alguém morreu na cozinha, mas foi parar a outro lugar. O corpo foi tirado da cozinha e colocado no sofá da sala, embora "foi tirado" e "foi colocado" continuem a desagradar-me profundamente. Aceito a construção, mas não a usaria. Prefiro "Freddie e Myra carregaram o corpo para fora da cozinha e deitaram-no no sofá da sala". Porque tem o corpo de ser o sujeito da frase? Está morto, por amor de Deus! Esquece lá isso!» (KING, 2020: 119)
Por isso, S. King aconselha veementemente que se evite esta construção frouxa — e (permitam-me o aparte), como a minha amiga Marta diz, «pouco expedita». S. King tece também considerações sobre os diálogos, dizendo que nem sempre faz sentido ser-se absolutamente zeloso das regras gramaticais. Vergar as falas a uma hiper-correcção pode mesmo ser a receita para um diálogo pouco credível; sem vida.
Discorre ainda, praticamente em tom de manifesto, sobre o uso dos advérbios de modo (que diz serem o caminho para o Inferno) pois, segundo ele, deve ser a prosa a mostrar o que o advérbio dá de bandeja. Fala-nos ainda sobre o uso de verbos declarativos (como verbos dicendi que não o são) e sobre a joia da coroa, a metáfora: «Quando uma metáfora acerta no alvo, agrada-nos tanto como encontrar um velho amigo numa multidão de desconhecidos» (KING, 2020: 170).
Mas a maior generosidade de S. King está em mostrar uma parte de um dos seus manuscritos e as respectivas revisões e edições — levando ao deleite da curiosidade filológica — e mostrando esse lado oficinal que tantos escondem ou trasvestem sob o termo «inspiração».
Este é um livro que encara com bom-senso e realismo o facto de grande parte dos seus leitores poderem ser aspirantes a escritores. Não dá pancadinhas de alento no ombro do sonhador (King considera que um escritor competente pode, no máximo, tornar-se num bom escritor). Não o humilha; alerta-o.
Aqueles que se retiram para uma casa no meio do nada, em comunidade com outros pseudo-escritores e, depois, em conversas animadas à volta da fogueira, partilham o que escreveram, podem muito bem-estar no caminho errado. Afinal, há um lado de contenção, disciplina e abnegação que a escrita pede e que nada tem que ver com experiências lúdicas à volta dela.
Como S. King diz, em estilo lapidar, é preciso desligar a televisão, fechar a porta e querer começar.
Elsa Alves
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