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Sete de uma vez, do telhado para o chão.

A noite passada fui surpreendida com sete chamadas não atendidas. E eu, que sou muito mais atenta às pessoas do que ao telemóvel, devo admitir que o número de tentativas de contacto — ainda por cima ímpar — me deixou momentaneamente sem ar. 

Não passava de uma brincadeira terna que me enterneceu, e repare-se que não pretendo atribuir responsabilidade a mais ninguém além de mim: eu sou a única responsável pelo sufoco. Eu que fui automaticamente catapultada para um lugar de culpa, para um fosso que escavei todas as vezes que procurei ter uma certa independência e a confundi com aquela infantil necessidade de ser desatenta. 

Há uns anos o meu pai caiu do telhado. Sim, do telhado. Ele talvez já tivesse uns 67 anos e, esquecendo o perigo a que todos estamos sujeitos se cairmos de um telhado, é provável que ele se tenha rido bem mais do que eu que, nos meus aéreos 24 anos, não lhe atendi o telemóvel das duas vezes em que me ligou porque, à data, insistia em julgar que o rodopio de Lisboa era mais importante do que qualquer telefonema familiar.

Já não penso isso. Mas até hoje não sei o que estava ele a fazer no telhado simplesmente porque não atendi o telefonema — e com o meu pai (e comigo) estas histórias de inconsciência e azar ou se sabem na hora ou nunca se chegam a saber. Diz-me que ia resolver não sabe bem o quê, talvez ajeitar o canto de uma janela mal calafetada; ajustar uma telha que, deslocada, deixava entrar a água da chuva; arrancar umas urtigas quaisquer que contaminam a imagem equilibrada do telhado que só o meu pai — e mais ninguém no mundo — se esforça por assegurar. 

Dessa vez — como em tantas outras — não houve nenhuma mazela de maior. Só uns quantos arranhões na barriga e uns calos engrossados nas mãos. Foi precisamente pela barriga e pelas mãos que ficou provisoriamente pendurado na beira do telhado de nossa casa, antes de cair — «em câmara lenta», diz ele — para o chão de azulejo avermelhado do pátio.

Contou-me uns dias depois — porque eu era desatenta e ele orgulhoso —, mas fi-lo prometer que me contaria todas as andanças seguintes no exacto momento em que ocorressem, que só desistiria de me ligar quando eu finalmente atendesse.

Imagino que ele tenha desvirtuado a promessa tantas vezes quanto eu. Mas eu, se não fiquei mais responsável, fiquei pelo menos com mais medo de chamadas não atendidas. Image-se de sete.  

Marta Cruz

Escrivaninha

Comentários

Anónimo disse…
Muito bom!

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