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Conforme os pássaros

Texto de Miguel Serra
Unsplash || Umut YILMAN


Recordas-te de quando nos sentávamos junto ao rio, a ver os pássaros?

Estive lá hoje, no mesmo banco onde nos costumávamos sentar.

Era a nossa rotina em manhãs de primavera. Era o início de dia perfeito, antes das alergias me tocarem a face e de sermos obrigados a abandonar o posto. Trocávamos e partilhávamos a vida como era costume, enquanto os pássaros nos sobrevoavam as cabeças, desafiando-nos sem que déssemos conta.

Um dia, apercebeste-te do desafio e propuseste-mo. Na altura, não o vi como uma competição e jamais como uma forma de me apropriar de algo que não tinha o direito de conquistar. Na verdade, era uma competição que contava claramente com a confiança que tínhamos no bom fundo e honestidade um do outro — o que, embora saudável, não é o tipo de actividade que alguém se proponha a fazer com qualquer pessoa.

Sugeriste-me que escolhesse um pássaro. Tu escolherias outro. A ideia era perceber quem conseguiria seguir o seu rasto durante mais tempo, ao mantê-lo sob o olhar, sem o perder na confusão de outros pássaros ou de elementos da paisagem perante os quais ele rodopiaria com o único objetivo de nos dificultar o jogo (quão ingénuo era eu, consigo perceber agora!).

Enquanto o conseguíssemos fazer, esse pássaro seria nosso. Eu escolheria o meu e tu o teu, não os partilharíamos. Em vez disso, partilharíamos o silêncio. Conforme os perdêssemos de vista, cada um dos nossos pássaros voltaria a ganhar a sua liberdade. Foi o início de um ritual que repetimos todas as manhãs que passámos junto ao rio. Uma competição que eu levava a sério. Mais do que tu, creio.

Muitas vezes, após perderes o rasto ao teu pássaro, viravas o olhar para mim — que continuava focado na ave que eu acreditava ter o direito de chamar minha. Agarrava-me a ela como a uma ideia que não queria largar — o que obrigava a que passássemos largos momentos em silêncio: eu a perseguir o pássaro com o meu olhar e tu com o teu olhar fixado em mim. Era agradável: podia não ser um momento pelo qual ansiasse durante toda a semana, mas, quando chegava, conseguia perceber que era provavelmente um dos momentos que mais apreciava na minha rotina.

De alguma forma, deleitavas-te com isso: com a seriedade com que eu encarava uma actividade cujo único objetivo era a fruição de um momento a dois. E, por isso, perdias sempre. No fundo, essas manhãs que por vezes se alongavam até se transformarem em inícios de tarde, terminavam quase sempre da mesma maneira. Eu a olhar o pássaro, e tu a olhares-me a mim. Muitas vezes me perguntei se também tu o conseguirias seguir reflectido nos meus olhos. Como se os encarasses como umas tiranas jaulas de vidro que o impediam de voar para outro porto.

Ouvia as tuas gargalhadas enquanto permanecia hirto, focado no meu objetivo. Divertias-te com a tua própria distracção e aproveitavas o momento para atribuir aos pássaros um inconformismo à ideia de estarem presos nem que fosse num olhar. Percebia que isso te reconfortava. E a verdade é que também o meu pássaro acabava por se libertar, fosse pelo cansaço da vista, por uma distracção curta, ou apenas pela minha desistência. Ficava então cabisbaixo, mas esse sentimento desvanecia-se rapidamente, tal como os pássaros nos fugiam dos olhos.

Hoje, contudo, a dificuldade foi maior. Os pássaros fugiam-me quando se cruzavam uns com os outros, e eu perdia o rasto a cada um dos que queria tomar como meus durante os breves minutos que lhes dedicava. Ao escolher um novo, fugia-me esse também, perdendo o dom que tinha quando os olhava contigo.

O que me faria vacilar? Na altura, jamais me teria ocorrido perguntá-lo: se estivesse presente uma terceira pessoa que te olhasse, ver-me-ia a mim preso nos teus olhos como tu vias os pássaros presos nos meus?

Fechei os olhos por momentos, acreditando que essa seria a minha forma de libertar os pássaros que esvoaçavam sobre o rio. Desta vez, o silêncio era apenas meu.

Miguel Serra

Comentários

Anónimo disse…
Adorei!
Anónimo disse…
Excelente!!!
Anónimo disse…
Muito bom! 👏👏
Anónimo disse…
Como sempre, excelente !!
Ana Marques disse…
Profundo... Muito bom!!! Beijinhos Miguel Ana Marques














Luis disse…
Seguindo o "meu" pássaro de longe observo com admiração toda a sua potencialidade para voar tão alto quanto se proposer.
Grato pelo excelente vôo.

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