Formas de ontem em palavras de hoje

Português antigo e português recente

Talvez não nos lembremos disso diariamente, mas a nossa língua nem sempre foi como é hoje.

A História da Língua é a ciência que se dedica ao estudo da evolução da língua, quer no que diz respeito a mudanças sintácticas, morfológicas e gráficas específicas, quer no que concerne aos contextos culturais e socioeconómicos que lhes servem de pano de fundo. É, aliás, por isso que o conceito de nação não pode ser entendido apenas do ponto de vista territorial, mas também à luz da cultura e da língua que unem um determinado povo.

Bom, mas o certo é que no Português Antigo (até à primeira metade do século XV) havia palavras — ou formas de palavras — que hoje não reconheceríamos.

E hoje, na Escrivaninha, acende-se o «Pavio da vela» para darmos a conhecer aos nossos leitores algumas curiosas formas antigas com que nos deparámos durante a última semana, num manuscrito copiado no Mosteiro de Alcobaça por Estêvão Anes Lourido, em 1416 (formas essas que espelham a língua do original copiado e não necessariamente a língua do copista).

ACAECER

Soa-vos ao verbo aquecer? Não estão errados.

Contudo, <acaecer> é uma forma que, no século XIII, correspondia a dois verbos distintos:

- Aquecer (do lat. CALESCERE — e perdoem-me a ausência do acento que não sei colocar), que significa «estar quente», «queimar», «ferver» etc.

Acontecer (do lat. ACCADESCERE, derivado de CADERE, isto é cair), que significa «cair em sorte».

E acaeceo huu dia que o mjnjno boniffacio .

COITA

<Cuita>, <cuyta> ou <coita> no século XIII, substantivo que vem do verbo coitar (do provençal e do latim vulgar *coctare, particípio passado de COGERE (por sua vez «empurrar», «impedir» ou «constranger») que significa «grande aflição e sofrimento», «desgosto», «compulsão física ou moral», «dor», «necessidade». 

Não é, por isso, difícil perceber de onde vêm os nossos coitados e coitadas.

coita dos tormentos

EMPECER

Do latim vultar *impedisco, de IMPEDIRE («impedir» ou «embaraçar), esta forma atesta-se no século XIII e significa «provocar prejuízo», «prejudicar», «transtornar», «causar impedimentos», «dificultar».

É possível que seja variante de EMPEÇAR, forma antiga de embaraçar (isto é, «emaranhar»). Contudo, há autores que consideram que este segundo não deriva de *impedisco, mas de *impeditiare, de impeditus, particípio passado de IMPEDIRE.

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CALEZ

Forma antiga do substantivo cálice (do latim CALIX, «copo» ou «caso de beber») que, no português do século XIII é atestada com as seguintes grafias: <calez>, <caliz> ou <calz> (sim, sem vogal). 

<Cálice> atesta-se em 1873.

huu calez que quebrou

RELIGA

Hoje, religa seria unicamente a forma do imperativo do verbo religar (isto é, «voltar a ligar»). 

Contudo, é também uma forma antiga, atestada no século XIII, da palavra relíquia (do latim RELIQUIA, plural de RELIQUIUM, «coisa deixada»), isto é, de uma «coisa rara, preciosa ou antiga» ou «objecto/parte do corpo de um santo».

tragia por religas

TOSTE

Além de 1. «um banco a que se agrilhoam os condenados» ou 2. «um brinde, bebida em homenagem a...», no século XIII (e, embora antiquado, ainda hoje) toste era frequentemente utilizado como advérbio que significava «de modo rápido ou breve», isto é, «depressa».

E el tam toste euyou

Como estas, o que não faltam na língua portuguesa são formas que, com o tempo, sofreram transformações de todos os tipos. Desde o significado ao género, passando pela grafia, morfologia e fonética, nem tudo foi como hoje.

Qualquer dia trazemos-vos novas-velhas formas! ;)  

Marta 

Comentários

Anónimo disse…
Venham as novas-velhas formas!

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