Avançar para o conteúdo principal

A Little Life, de Hanya Yanagihara


A little life
A Little Life


Quando decidi ler A Little Life, de Hanya Yanagihara, conhecia o suficiente sobre a obra para saber que me propunha a ler um romance difícil de digerir. Desconhecia, contudo, os motivos que me levariam a considerá-lo assim.

Feita uma breve pesquisa, descubro que este é o segundo romance da autora americana, que é natural do Havai, mas vive em Nova Iorque — a cidade que serve de cenário à narrativa de A Little Life. Embora nunca lá tenha estado, sinto que estou perante uma representação fiel da cidade, como Hollywood jamais foi capaz de me apresentar.

As primeiras páginas da obra transportam-me para um núcleo composto por quatro personagens: um grupo de amigos coeso, cuja amizade universitária resistiria para o resto da vida.

Sou apresentado a Malcolm, uma personagem que ainda se está a descobrir e que vejo como aquele amigo que procura ficar sempre à margem dos conflitos. De todos, é o único que pode contar com um apoio financeiro estável da parte dos pais — o que surge a par de uma pressão acrescida para ser profissionalmente bem-sucedido.

Tenho também a oportunidade de conhecer J.B., a minha personagem preferida, sobretudo pelo seu carácter «humano», no sentido mais errático do termo. Ao contrário de Malcolm, é nos conflitos que J. B. procura marcar uma posição. Um poço de excentricidade e ambição e com vários comportamentos facilmente condenáveis, J. B. é sem dúvida uma personagem por quem é impossível não nos sentirmos cativados.

Em contrapartida, Willem é o amigo cujos valores — nomeadamente no que diz respeito à ética e lealdade — podem ser um obstáculo para a sua carreira de actor, mas a aparência joga a seu favor. É um trabalhador árduo e um amigo ainda mais dedicado, uma personagem íntegra, honesta e que assume sempre uma postura quase imaculada.

A narrativa continuará a segui-los a todos ao longo da idade adulta, mas encontra o cerne no quarto elemento do grupo: Jude. Jude é o protagonista de A Little Life e foi por ele que sofri ao longo das imensas páginas que o entroncam.

À partida, o narrador não adianta muito sobre esta personagem e a sua origem é um mistério até para os amigos mais próximos. O leitor reconhece de imediato Jude como sendo um jovem sensível e tímido, com algumas dificuldades de mobilidade sobre as quais nunca se manifesta. Mas é aos poucos que o seu perfil vai ser delineado, dando contorno a indícios — que cedo se transformam em confirmações — de uma infância traumática, onde o abuso sexual e a prostituição forçada eram recorrentes. E são estas memórias da infância de Jude e as suas reincidências no presente que fazem desta uma leitura tão pesada. Porque se os vilões do passado da personagem o perseguem, certo é que ela não lhes dá acesso — nem mesmo aos heróis do seu presente, que tantas alegrias lhe concedem.

Mas o grupo de personagens não se esgota nestes três amigos. Inclui ainda Harold e Julia — um professor de Jude e a mulher, que começam a vê-lo como um filho — e por Andy — o único médico em quem Jude confia. Todos se vêem constantemente diante do mesmo dilema moral: se estarão a agir correctamente na forma como lidam com os comportamentos auto-destrutivos de Jude — de auto-mutilação recorrente a tentativas de suicídio — ou se estarão a deixar que ele os perpetue.

A Little Life obriga-me a pensar na forma como eu, enquanto homem, lido com as minhas vulnerabilidades, ao mesmo tempo que me ajuda a perceber os amigos do protagonista que, diante dessas fragilidades, se sentem impotentes. Teria eu permanecido na vida de Jude como Willem, Harold ou Andy?

Este romance de Hanya Yanagihara forçou-me a fazer um luto. Embora não seja um livro fácil, aconselho-o não só pela beleza da linguagem, mas por me ter feito repensar os conceitos de empatia e resiliência — aqui palavras-chave. No entanto, o futuro leitor de A Little Life deve estar consciente de que esta é uma recomendação prudente.

Miguel Serra

Comentários

Anónimo disse…
O seu texto é um convite irresistível.
Anónimo disse…
excelente
Anónimo disse…
parabéns pelo texto. muito conciso e esclarecedor

Mensagens populares deste blogue

Nem só de "passado" se faz o adjectivo

  A  palavra “passado” — não o passado que passou, mas o adjectivo — é muitas vezes erradamente utilizada.  A culpa do erro? Atribuimo-la à confusão com uma outra classe de palavra: o advérbio , que  não  varia em género (masculino e feminino) e número (singular e plural).  Por causa deste quiprocó, dizemos muitas vezes “passad o ”, mesmo quando deveríamos usar “passada”, “passadas” ou “passados”,  conforme a expressão a que o adjectivo diga respeito. E sta confusão acontece apenas quando se usa o adjectivo num contexto temporal, isto é, com o sentido de  determinado tempo volvido,  já que a ninguém ocorre usar sempre “passado” noutros contextos, como: " A camisa foi mal  passado ."  " Quero os bifes bem  passado , por favor!", " A tarde e a manhã foram bem  passado ."  Toda a gente diz, e bem: A camisa foi mal  passada .  Quero os bifes bem  passados , por favor!  A tarde e a manhã foram bem ...

Homenagem em forma de pergunta, parte I

A Conversa Fiada desta semana, e pontualmente a partir de hoje, decide dar também voz a opiniões alheias. Todos sabemos que os profissionais de saúde (médicos, enfermeiros e auxiliares) foram essenciais quando a COVID-19 entrou em cena. Foi também na altura em que a comunidade médica mais precisava de alento que Marta Temido injustamente apelou à sua resiliência extra e que, numa triste ironia, Costa lhes chamou «cobardes» em off. Em jeito de singela homenagem decidimos entrevistar alguns médicos jovens, que enfrentam, durante a formação especializada, as duras primeiras provas de fogo. Aqui ficam alguns dos seus testemunhos sobre como é afinal trabalhar a cuidar dos outros. Esta é a primeira parte da nossa singela Homenagem em forma de pergunta. *** Sandra Cristina Fernandes Pera Médica de Medicina Geral e Familiar Sandra Fernandes 1) Porquê Medicina? Porque Medicina é um mundo. Aprendo imenso com as histórias dos pacientes. É uma área que me faz ver que não há duas pessoas iguais: ca...

Eat that doubt

Desenho de Fuinha Ele, ao sol, vermelho como um erro.   Eu a vê-lo; a digladiar-me com os sórdidos detalhes.   Nem a benevolência da luz influía afinação na certeza.   Amor,   como a  súbita  chuva de verão,  começa prende-te a forma esquiva; estaca em quieta complacência.   Dentro duma jarra fica   como o cúmplice  estoico do segredo.   És a decisão   de quem segue repetindo    eat  that                  doubt                     ante a luz propícia, contra a investida de uma condição.     Março, 2019     Nota : Eat that question é o título de uma música de Frank Zappa,  que inspirou o título do texto.   Elsa   Escrivaninha