Quarto sem vista


Texto de Marta Louro Cruz

Pela porta de madeira escura, à direita, encostada à parede branca, a cama já ocupa o meu olho todo. É alta, tem 200 x 180 cm, um colchão gordo e sobre ele está esticado um edredão de penas azul-escuro, pesado como os que vivem nos quartos de hotel, cujos limites estão todos a dois centímetros do chão, medidos a olho de arquitecto. Não vejo os pés deste animal de sono, o que é sinal de que não tão cedo correrá na minha direcção e de que tenho tempo para bisbilhotices. Os lençóis, que só vejo quando levanto timidamente o edredão, estão repuxados como o cabelo de uma bailarina: tudo indica que passam por aquele tratamento de goma dos alojamentos turísticos para que nada saia do lugar e as pessoas sejam expelidas da cama antes do meio dia.

Sobre a cama, quatro almofadas gordíssimas: duas invisíveis, debaixo da escuridão da coberta, outras duas de um azul-escuro-esverdeado, com uns apontamentos em linha recta pouco óbvios no canto superior direito de cada uma. Não há aqui simetria, mas há um quê de mania que me aflige.

À esquerda da cama, uma mesa de cabeceira com um tampo quadrangular. Faço escorregar o indicador sobre ele em busca de desalinhos, mas confirmo: o verniz está impecável. Sobre essa mesa, um copo de água rectangular meio-vazio, com um fundo de vidro grosso e uma protrusão à maneira dos copos de whiskey, cuja superfície interior está, da linha da água para o topo do copo, embaciada e coberta de bolhas de ar aleatórias — o abandono é evidente. À esquerda, um candeeiro pequeno com um abajur de plástico cinzento que me catapulta para o céu-que-ameaça-chuva da aldeia. À direita, avançado em relação ao copo de água, um estetoscópio de um preto brilhante dobrado com rigor, sem uma mazela que lhe retire o estatuto de «por estrear». Mais adiante, um despertador conservador, com quatro pezinhos inexperientes e um mostrador inócuo cujo aspecto frágil não parece compensar a implacável campainha.

Não há um tapete, não há um quadro, não há uma fotografia e também não se vêem sapatos. Aos pés da cama há só dois chinelos de tecido bege com um corte japonês, escrupulosamente alinhados como se deles se erguesse um guarda em jeito de holograma.

Há apenas uma cómoda branca encostada à parede, perpendicular à porta e paralela à cama. Sobre ela, uma conjunto de dezasseis livros de filosofia e ciência ordenados por tamanhos — em ordem decrescente, da esquerda para a direita —, que vão de um gordo Harrison a uma edição de bolso do Fédon por cuja lombada magrinha espreitam folhas de papel amareladas do sol e se adivinham letras miúdas. Nas primeiras três gavetas encontro roupas organizadas por cores — tal como estão as camisas e os casacos no roupeiro embutido —, em rolinhos curiosos que não desperdiçam um milímetro de espaço livre. Na primeira gaveta, boxers sem vincos, vergados pelo ferro, e meias com um dos canos dobrados sobre o outro para que não se separem. À direita, os «inclassificáveis» e os «casuais», que não passam de objectos de categoria indeterminada apenas porque fazem uma eclética companhia uns aos outros: óculos-de-sol, manuais de instruções, carregadores de numerosos aparelhos, uma mão cheia de frascos de champô, gel de banho em miniatura e um pente de plástico preto com apenas doze dentes.

Neste quarto há uma só janela. Por ela espreita um estore encravado, que escorrega pela calha só até meio da estrutura, deixando metade do mundo, lá fora, e da vida, cá dentro, a descoberto. Apesar de não haver uma mancha na vidraça e de as cortinas — de momento apartadas — serem de um azul irrepreensivelmente sombrio, a indiscrição desta janela pede-me que imagine a ausência de luz do quarto, estivesse o estore fechado. Também imagino o quão desarrumado se sentirá quando chegar quem nele dorme.

Marta Cruz

Comentários

Anónimo disse…
Muito Bom!!!

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