A Gorda, de Isabela Figueiredo

Livro A gorda
A Gorda


A Gorda, de Isabela Figueiredo, apresenta-se como uma interessante e inesperadamente leve experiência de leitura que me transportou para as memórias de Maria Luísa: uma mulher de meia-idade que nos conta várias narrativas sobre diferentes âmbitos da sua vida. Este primeiro romance da autora cativou-me pela sua linguagem simples e honestidade despretensiosa. Hoje conto-vos porquê.

A estrutura do romance aproxima-se à de um diário ou à de um livro de memórias, sendo contado na primeira pessoa. Os títulos de cada um dos capítulos correspondem a diferentes divisões da casa, que por sua vez se relacionam com as diversas temáticas que Maria Luísa decide discutir em cada uma. As histórias que nos conta são episódicas e muitas vezes interrompidas, dando espaço para novos eventos para, mais tarde, serem retomadas — tal como a nossa memória habitualmente o faz.

Nestas histórias ficamos a conhecer o grande amor da vida da personagem, a sua relação com os pais, a forma como lidava com o peso (e que a levou a fazer uma gastrectomia), a infância passada em Moçambique (que ficou para trás quando veio viver para Portugal) e também a sua ligação com a escrita.

A forma como todos estes assuntos são abordados é bastante honesta e não seria sequer necessário ler muito sobre a autora para ficar com a ideia de que esta obra muito provavelmente ultrapassa alguns limites da ficção. Ficaria com essa sensação, mesmo se tivesse escolhido ignorar a advertência que a autora optou por fazer nas primeiras páginas da edição que seguro: «Todas as personagens, geografias e situações descritas nesta narrativa são mera ficção e pura realidade».

Aliás, na curta biografia da autora presente no livro, fiquei logo a saber que Isabela Figueiredo é uma mulher das letras, nascida em Moçambique, o que aproximava a sua história à da protagonista do seu trabalho. Porém, a forma sincera como Maria Luísa reflecte sobre os acontecimentos da sua vida já fazia prever que a sua narração fosse muito mais do que apenas ficcional.

Isto porque estas narrativas — que se cruzam e separam —, além de serem extremamente credíveis, são contadas com um respeito enorme, quer pela linguagem utilizada, quer pelas personagens secundárias que Maria Luísa nunca descreve como antagonistas ou vilãs. Longe disso: há uma preocupação clara em manter vivas as boas memórias, mesmo quando seria legítimo haver ressentimentos.

Por isso é que no início deste texto me referi a esta como uma leitura «surpreendentemente leve»: porque tinha tudo para não o ser. Afinal, esta vida de Maria Luísa tem contornos dramáticos, mas a personagem jamais se deixa moldar por eles. Há uma certa ingenuidade consciente na forma como o escolhe fazer — e daí a autora optar por uma linguagem simples.

Na pequena sinopse que se encontra na aba esquerda do exemplar que eu possuo, a descrição da protagonista é a seguinte: «Sofre humilhações, desgostos de amor, traições, a morte do pai e da mãe (que vive com a sua solidão de filha única), mas não soçobra. Nunca.» É exactamente esta a sensação que permanece desta personagem que parece ter tanto da sua autora: a sensação de que é alguém que teria tantas razões por que se vitimizar, e que decide não o fazer.

A leitura de A Gorda é fluída e cativante, colocando-nos na pele desta mulher com uma história tão particular e levando-nos a reflectir sobre o amor, a família e a até a relação com o nosso corpo. Foi uma obra que comunicou comigo como uma conversa íntima, daquelas que por vezes temos com um amigo e, quando damos por isso,  passaram horas.

Não acreditam em mim? Leiam: «Estou aqui de passagem, é para seguir em frente, sou de ferro e ninguém me dobra. Em silêncio, sou sempre eu e o que em mim se compõe e apruma.»

Miguel Serra



Comentários

Anónimo disse…
Só desejo que a leitura desta obra seja tão cativante como é o texto que aqui a veio apresentar.
Anónimo disse…
Adorei o seu texto. Tem o condão de levar a ler. Obrigado!

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