Diálogos entre a prosa e a poesia — parte I
Se a prosa e a poesia fossem amigas, o que diriam uma à outra? |
Provérbios preferidos
Prosa: «Grão a grão enche a galinha o papo».
Poesia: «Para bom entendedor, meia palavra basta».
Férias
Prosa: Vou para Tormes. Lá sinto-me bem.
Poesia: Vou para Pasárgada. Lá sinto-me bem também.
Serões de família
Prosa: A minha família? Numerosa e faladora, como eu! Enchemos a casa toda e à noite contamos histórias. Fazemos grandes jantaradas, dialogamos muito!
Poesia: Quase todos discretos... Gostamos da noite e de resolver charadas... Ah e de gatos e corvos falantes.
Prosa: Celebro sempre com uma festa de arromba e convido toda a gente — sobretudo muitas personagens secundárias! Protagonistas? Não! Nos meus anos, a protagonista sou eu! Sim sim e não me importa que me acusem de ser meta-literatura! (deitando a língua de fora).
Poesia: Não gosto de fazer anos... É sempre um dia nostálgico... Normalmente fico no canto de uma sílaba muda e sopro as velas só com o sujeito poético...
Conhaque é conhaque
Prosa: Tenho tanto que fazer! Tanta coisa para organizar!
Poesia: Deixa-te disso, amiga! Anda, vem comigo jantar, ver as estrelas, andar à chuva... Esquece as tuas listas de tarefas rocambolescas! Está uma noite tão peculiar. Parece chamar-nos...
Prosa: Estás louca! Lá estás tu... Tenho de organizar a descrição de uma sala, pontuá-la, limpar repetições, vírgulas perdidas, pôr ordem naquele pessoal... E são poucos... (suspirando).
Poesia: Boa sorte, então...
Prosa: E tu? Nada para fazer? (longo silêncio). Qual é a desculpa desta vez?
Poesia: (entusiasmada) Uma festa surrealista!
Funeral
Poesia: Quem diria, a epopeia...
Prosa: É assim. A morte não escolhe idades nem géneros.
Poesia: Enfim. O fado assim dita.... E onde é o funeral?
Prosa: Sempre com a cabeça no ar! No Parnaso, claro. Onde mais seria?
Poesia: Ah, claro... Então passamos a cumprimentar as musas.
Prosa: Essas mexeriqueiras? Vais só tu! «Ch-ch-ch» e não dizem nada. Eu vou com o Apolo tomar um gin. Se é para me dar música...
Trânsito ao telefone
Prosa: Onde andas?
Poesia: Estou a passar um encavalgamento, não sei bem o que se passa mas acho que mais à frente há ali a uma assonância estrondosa...
Prosa: Ui... Mirones como os há, nunca mais sais daí. Já eu estou espraiada sob um sol hiperbólico na praia, numa esplanada, a ver as vistas.
Poesia: Isto está mesmo complicado, uma autêntica ode... Ficas triste se não for?
Prosa: Como sempre! Fazes-me uma elipse destas?
Poesia: Tu também as fazes!
Prosa: Mas muito menos!
Poesia: Não, não, não! Não ouço... Nada.... Nada... Ouço... Tempo. Ouve nada nada nada.
Prosa (suspirando): Lá está ela... Pôr-se moderna é sempre uma boa desculpa.
Verne e Transtorno Obsessivo Compulsivo
Poesia: Então, estiveste agora com o Júlio?
Prosa: Sim.
Poesia: Está melhor?
Prosa: Não. Sempre a pedir-me para guardar tralha! Aquela mania da acumulação não lhe passa... não adianta. Já lhe disse: estou cansada de organizar os teus bibelôs! Preciso de dois anos de férias! Apre!
No hospital
Prosa: Então, minha hipocondríaca, o que é que o médico disse?
Poesia: Bucólicas.
Personalidade
Prosa: Admito, sou coscuvilheira. Adoro conhecer pessoas, ouvi-las, saber das suas histórias do início ao fim, e tudo tim-tim por tim-tim.
Poesia: Observar, especular, meditar e... fazer perguntas... Às vezes as pessoas ficam a olhar para mim a perguntar-se... Pois bem, minhas amigas, ainda não perceberam que quem faz as perguntas sou eu?!
Poesia: Eu prefiro estar só com a palavra exata. Bem sabes que vivo com a promessa de um amor grave e triste.
Prosa: Pensei que já tinhas passado a fase romântica! Deixa-te de idealismos. Achas mesmo que a palavra certa existe?
Poesia: Não sei... Deixa-me estar, só me sei assim... Ah... «para tão longo amor tão curta a vida...»
Prosa: Essa mania de andares despedaçada... Recompõe-te! Andas sempre tão triste, tão séria... sempre com o mesmo semblante. Nunca estás satisfeita com nada!
Poesia: Não me provoques! Como sempre, falas de mais! Prolixa!
Prosa: Bah!!! Frígida!
Guerra
Poesia: Estou preocupada. Dizem que sou uma arma...
Prosa: Uma arma? Uma flor de estufa como tu?
Poesia: Dizem que sim... Evocam-me, falam-me do meu «temperamento bélico»...
Prosa: Tu?? Hahaha! Como é possível?
Poesia: Não sei, mas tenho medo...
Prosa: Mal será que te recrutem... Não te preocupes... Vais ver que em vez de ti vai o manifesto.
Elsa
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