Espoletando e despoletando granadas por essa língua fora


Quando usar o verbo despoletar
Granadas por essa língua fora
Fonte: Pixabay

Há uns dias ouvíamos A beleza das pequenas coisas — o podcast de Bernardo Mendonça no Expresso —, desta vez com a Sara Barros Leitão. E, embora muito mais atentos ao conteúdo da entrevista do que à forma, não fomos capazes de não notar dois momentos que perpetuam uma imprecisão muito comum na língua portuguesa.

Num primeiro momento, pergunta Bernardo Mendonça: «Mas houve algo que despoletou isso? Houve um gatilho para sentires essa urgência de ter voz e de ter mensagens a passar?»

Mais adiante, diz Sara Barros Leitão, a respeito dos seus «medos e fantasmas»: «A partir do momento em que tu aceitas dar uma entrevista, como eu estou a fazer hoje, obviamente que eu saio daqui e penso: "Pronto, tenho medo do que é que isto vai despoletar." Por exemplo, tenho medo do que é que se vai escrever, descontextualizando aquilo que eu digo (...)»

Ora, «despoletar» é um verbo que, como nestes dois casos, é muitas vezes confundido com o seu antónimo: «espoletar».

Afinal, o que significa cada um deles e o que é que explica a elevadíssima disseminação da confusão entre eles?

Antes de mais, é necessário saber que os dois verbos têm origem na palavra «espoleta»— um «dispositivo que produz a detonação de cargas explosivas e projéteis», um «disparador».

Para ajudar os nossos leitores a visualizar — e com a ajuda do blogue do Marco Neves — as espoletas são objectos de metal ou madeira cuja função é dar início «à inflamação de uma carga explosiva em projécteis ocos». Os mais conhecidos projécteis que se servem de espoleta são as granadas de mão — projéteis explosivos lançados manualmente, activados quando lhes retiramos a cavilha de segurança e que, quando projectados, têm um dispositivo percursor que obriga a espoleta a iniciar a inflamação da substância explosiva.

Assim, «espoletar» significa 1) «pôr espoleta em» (o que permitiria a explosão) ou, em sentido figurado, 2) «dar origem a; desencadear; provocar».

Por outro lado, «despoletar» significa o oposto (como o sufixo indica), isto é, 1) «tirar a espoleta a» (o que significaria impossibilitar a explosão) e, consequentemente, 2) «anular algo», «travar o desencadeamento de», em sentido figurado.

Portanto, o que é que desejamos exprimir quando usamos uma destas palavras: queremos espoletar e dar aso à explosão ou despoletar e impedir que ela aconteça?

A imprecisão explica-se facilmente: «espoleta», «espoletar» e «despoletar» são palavras do vocabulário militar que — e ainda bem — não só já não fazem parte do nosso dia-a-dia, como talvez só quem tenha seguido carreira militar as utilize com mais frequência.

Mas se a imprecisão tem razão de ser, não significa que seja desculpável...

Só há duas soluções: a primeira é saber distinguir as formas verbais. A segunda — perfeitamente aceitável em vários âmbitos, sobretudo tendo em conta que «espoletar» e «despoletar» não são palavras totalmente acessíveis por quem não domine o vocabulário militar — é optar por utilizar um sinónimo.

Ora, neste contexto, o que Bernardo Mendonça e Sara Barros Leitão queriam dizer era:

«Mas houve algo que espoletou/desencadeou isso?» e «Pronto, tenho medo do que é que isto vai espoletar/provocar

Tentemos não andar a espoletar e despoletar granadas, à solta pela língua fora, sim? Ou, pelo menos, façamo-lo com consciência e precisão.


Comentários

Anónimo disse…
Não falta quem use metáforas militares como quem acende um fósforo num paiol. Magnífico esclarecimento!
Nuno José disse…
De não quer sempre dizer o contrário. Ler "Dicionário Falsos Erros de Português" de Marco Neves.

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