Janelas



Uma reflexão sobre janelas, Miguel Serra
Janelas indiscretas entretêm.
Fonte: Unsplash

No caminho do trabalho para casa, tinha por hábito perder-se entre os prédios, fascinado pelas janelas que, do outro lado, revelavam salas com luzes acesas. Para trás, deixava um dia de trabalho e olhava as janelas da mesma forma que estava habituado a ver outras pessoas olharem as estrelas. Daquela perspetiva, ao longe, eram realmente estrelas que lhe pareciam. Fontes de luz numa noite já cerrada, embora as horas acusassem apenas umas nove e meia da noite.

Não conseguia ver o que acontecia do outro lado. Eram as janelas dos andares mais altos que o fascinavam. Não era o voyeurismo que o impelia a deter-se daquela forma. Era a realidade imaginada e as possibilidades que poderiam estar por trás delas que o cativavam, como se fosse um exercício ao qual se dedicava para libertar o seu potencial criativo.

Ingenuamente, as imagens que lhe passavam pela cabeça das vidas que aqueles apartamentos poderiam guardar traziam-lhe sempre um gosto daquilo que esperava encontrar na sua própria casa. Julgava que, se fosse capaz de as atravessar e de ter acesso ao outro lado, encontraria sempre fragmentos de um conforto pelo qual ansiava. Momentos íntimos de casais que jantavam, apaixonados. Famílias unidas em frente à televisão, interrompendo a emissão por vezes com conversas sobre o dia de cada um. Reuniões de amigos que se atualizavam sobre a vida uns dos outros, depois de ausências curtas.

Mesmo a solidão que, especulava, algum daqueles moradores pudesse sentir seria uma solidão partilhada com um cão, um gato, um periquito, ou outro animal qualquer. Não era uma solidão real, era só pautada pela falta de comunicação verbal que poderia separar as duas espécies.

Talvez por isso evitasse olhar as janelas mais baixas. Claro que isso o obrigava a uma invasão de privacidade que não estava disposto a cometer, mas não era só isso. Temia que ao olhá-las, pudesse arruinar a ideia romântica que tinha da intimidade. Mais do que temer, sabia-o. Afinal, enquanto parte do seu imaginário, aquelas salas às quais as janelas davam acesso escondiam contas para pagar, crises conjugais, ordens de despejo, violência. 

Por isso, preferia sempre olhar as janelas mais altas.

Fazia-o por rotina, sem se aperceber de que a ideia do conforto de casa acabava por fazê-lo atrasar o regresso à sua própria casa – que, se pensasse sobre, também não lhe concedia sempre o conforto que atribuía às casas dos outros, embora não se pudesse queixar. Foi aos poucos que esta atividade deixou de fazer parte do caminho do seu regresso a casa, mas não se apercebeu de imediato.

A verdade é que mesmo as janelas altas foram perdendo aos poucos o seu fascínio. Agora, se tentasse fazer o mesmo exercício, muitas noites depois, a realidade imaginada era outra. Perdia-se em pensamentos de quanto aquelas casas tinham contido vidas inteiras dentro delas, vidas que muito provavelmente desejavam extrapolar, transbordar por debaixo das portas, dos cantos mal isolados daquelas janelas que ele mesmo olhava, esperando por novas novas realidades que se parecessem minimamente com a antiga. 

Desta feita, a imaginação oferecia resistência para tentar adivinhar o que aquelas janelas escondiam. Já não era a vida dentro de casa que imaginava, mas a vida fora dela, que aguardava por oportunidades de se manifestar.


 Miguel Serra

Escrivaninha



Comentários

Anónimo disse…
Gostei muito das janelas altas que escondem e convidam à imaginação ...
Óptimo texto!

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