Velhos, lares e eufemismos

Bela e velha senhora
    Uma velha bonita.
Fonte: Unsplash

 

«Lares», esses sítios para onde vão, para onde são enviados os idosos, os séniores — ah... o eufemismo na palavra... e que palavra... com veneno sibilante da serpente: a linguagem.

Não gosto da ideia de lar e esta implicância começa na hipocrisia do nome. Para ir para um lar é necessário sair-se do seu. Os lares podem ser (são certamente) importantes para muita gente, mas posso não gostar deles?

Para mim, o lar é um sítio asséptico e descaracterizado, em que o que devia ser amor e mimo se substitui por normas sensatas; onde prepondera a atitude temperada e as atividades têm sempre um odioso propósito qualquer... Julgo que o lar infantiliza os velhos ao «obrigá-los» a fazer ginástica ou uma coisa chamada «terapia do riso». Destitui-os dos vícios e das manias que a idade implantou, endureceu neles, ao seguir a máxima de que o que é bom para todos será bom para cada um deles. 

Eu, que imagino os velhos como pessoas cravadas pelo tempo, com tiques, manias, hábitos, talvez sórdidos (e então?), inadaptáveis como reis, indigna-me perceber como o lar os verga. 

Penso nos velhos da minha vida e fico feliz por não estarem ou não terem de estar em lares. 

O meu avô Alípio, que não prescinde do seu copo de vinho, propala a ideia de que a noção de «copo» é subjectiva... Sempre a cirandar pelos castanheiros, precisa do campo, de estar perto do cemitério para dar uma palavra à avó Zelinda. 

Ela, sempre faladora, crítica: «Estes sumos espanhóis mim aguados são... Mas este — dizia quando falava do Compal —, é espesso, é bô!». 

Ela e a irmã, a Dora, tinham sempre que dizer uma à outra. Riam-se quando não deviam, como quando o avô foi picado por um enxame de abelhas e apareceu inchadíssimo no rosto e com olhos finos de chinês... E aqueles seus modos carinhosos de ralhar à mãe? «Bela, pasmada, já meteste as batatas no carro?!». «Arre carago... muito retrato me tirais...» (dizia aos primos brasileiros depois de muitas fotografias). O politicamente correto do lar depressa sugaria a graça espontânea da Zelinda. 

A tia Dora, que só quando vem à cidade e se vê «nos grandes espelhos», como diz, tem noção do quão arqueadas são as suas pernas, mas anda ligeira pela horta e sobe e desce várias vezes as ruas da aldeia, que faria num lar?

De tão hospitaleira que é, de tanto querer receber com fartura, sonha que o polvo, «a polveira», como diz, reservada para o dia de Natal, vai encolher e todos vamos sofrer com fome... Porque a Dora gosta que os outros comam — e, apesar da falta de dentes, gosta muito de comer. São quase sempre duas natas com o café, à hora de almoço. O que faria a Dora com as refeições comedidas, sempre saudáveis, do lar? 

O tio Arnaldo, de hábitos peculiares: dorme a insensatez de uma sesta de oito horas; tem galinhas no galinheiro e prefere comer frango do aviário; vê, antes do almoço, sentado no escano, aquele programa da vida selvagem e comenta-o com uma ou outra asneira, especialmente quando surgem crocodilos e anacondas no ecrã: «Catano do bicho! Olhai, olhai! Que canhangulo!». 

Num lar, o Arnaldo seria um rufia.

Dir-me-ão alguns que há quem já não se aguente, não tenha ninguém e o lar é a única solução: às vezes sim. Outras vezes há apenas pouca paciência para tratar dos velhos porque a velhice nos confronta — a nós, jovens — com o espelho do futuro e com a morte lá no fim. Por isso prefere-se ocultá-las debaixo dum véu eufemístico de rendas negras (sénior, lar), numa espécie de luto antecipado; mesmo com os velhos ainda vivos.


Elsa

Escrivaninha

Comentários

Anónimo disse…
Adorei!
Lígia Ribeiro Alves disse…
Parabéns, minha querida..digno de ser lido por muitos...e muitos políticos. E se soubesses a verdadeira realidade, vergonhosa que se passa nos lares, não serias tão branda. Infelizmente contínua a ser um depósito dos que necessitam. Beijinhos doces
Miguel disse…
De uma sensibilidade sublime e rara nos jovens de hoje.

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