O clube de vídeo da minha rua

Cassetes de vídeo
Ainda se lembram dos clubes de vídeo? 
Fonte: Unsplash

Fazia um frio intenso na cidade de Bristol em fevereiro. Acreditava que um ano a viver no Reino Unido me teria preparado para as temperaturas baixas, mas as primeiras impressões ali contrariavam-no. Sentia-o nos ossos e na pele seca, ressentindo o frio. Era a primeira vez que visitava a cidade, que me transmitia uma estranha sensação familiar. Não era que me fizesse sentir em casa; mas parecia comunicar com algumas cidades portuguesas que conhecia, mas onde nunca tinha vivido.

Talvez a relação que estabeleço entre Bristol e estas cidades a que me refiro seja inocente, demonstrando que não conheço realmente nenhuma delas. Ou talvez refletisse um sentimento de nostalgia e melancolia causado pelas saudades de casa, que já se começavam a fazer sentir naquela altura.

Ainda assim, uma das ruas mais largas de Bristol fez-me por momentos sentir que estava na Avenida dos Aliados, no Porto. Também a Ponte de Clifton, embora muito diferente, numa primeira instância, me transportou para a Ponte de São Luiz. Já o ambiente académico da cidade inglesa remetia-me à cidade de Coimbra, à medida que percorria o caminho íngreme até à imponente Universidade de Bristol. E não só: as casas coloridas perto do porto de Bristol levavam-me a acreditar que, por momentos, estava na Costa Nova na linha da Ria de Aveiro, e a passagem do rio Avon pelo meio da cidade lembravam-me também a zona central da cidade portuguesa.

Foi algures numa rua estreita, num desses passeios sem destino – próprios de quem explora uma cidade sem compromisso –, onde não via passarem muitas pessoas e onde distinguia apenas a figura de um homem encostado a uma parede, a fumar, que dei de caras com uma loja que me transportou diretamente para um outro lugar que já não visitava fazia tempo: o clube de vídeo da minha rua.

A loja, ali em Bristol, quase me passava despercebida, mas, ao passar por perto, a montra deteve-me. Três cartazes de filmes relativamente recentes, de diferentes géneros, anunciavam as novidades da loja. Um tanto intrigado com o espaço, espreitei pela porta. O lugar não tinha ninguém, mas estava longe de estar vazio. Parecia até demasiado pequeno para a coleção que angariava, distribuída numa série de estantes que separavam diferentes categorias cinematográficas e cada uma delas completamente preenchida.

O homem à porta, sem deixar o seu posto, convidou-me a entrar. Assim fiz. Ele não me seguiu de imediato – como se respeitasse a importância que o espaço poderia ter para mim e me quisesse dar privacidade. Era mesmo um clube de vídeo antigo como eu nunca mais esperava ver, mas exatamente como eu me lembrava: parecia estar entre uma loja de discos e uma biblioteca. Havia por todo o lado caixas de DVDs e cassetes VHS, organizadas meticulosamente.

Dediquei-me a uma secção e em percorrê-la com a ponta dos meus dedos, como se os tivesse ainda pequenos, propondo-me a explorar mais um filme, mais uma narrativa. Demorava horas a encontrar um filme que me interessasse e que ainda não tivesse visto. Por momentos, deixei de ser um adulto de férias num país estrangeiro. Era como se regressasse aos meus anos de pré-adolescência.

Recordava, em catadupa, as conversas que mantinha com o funcionário do clube de vídeo, que muitas vezes me recomendava novos filmes, normalmente mais apropriados à minha idade do que alguns dos filmes de terror que por vezes insistia em alugar. Foi numa dessas conversas que me cruzei com Miyazaki pela primeira vez, antes de me render aos encantos d’A Viagem de Chihiro.

Ao longo do tempo, as visitas ao clube de vídeo tornaram-se mais raras, até desaparecerem. Aos poucos, a minha experiência de cinema em casa tinha-se transformado com a insurgência das plataformas de streaming. As sugestões eram-me devolvidas através de um algoritmo e sentia-me a descartá-las na maior parte das vezes. Por isso, não conseguia deixar de sentir que tinha entrado numa máquina do tempo. Algures, encontrava-me com a minha versão mais jovem, ao mesmo tempo que o homem acabava o seu cigarro e regressava para dentro.

Tal era a minha absorção que só reparei nele quando me perguntou se precisava de ajuda. Respondi-lhe que não, distraído, mas logo de seguida comecei a fazer-lhe perguntas. Não discutimos títulos, géneros nem recomendações. Explicou-me que o lugar sobrevivia com clientes habituais, que continuavam a beneficiar da experiência de ir à loja; de manter o diálogo sobre cinema a fluir; de se deixar perder em experiências cinematográficas imprevisíveis – o que me reconfortou. Agradeci-lhe a atenção e saí, continuando a minha viagem.

Revivendo a minha conversa com o empregado que fumava, penso que «reconfortante» seria uma boa maneira de descrever a minha experiência como turista em Bristol – embora esta não seja a reflexão a que me proponho. Também não defendo que Bristol tenha o último clube de vídeo do mundo sequer. Uma breve pesquisa diz-me que ainda existem em Lisboa, embora nunca os tenha frequentado. O que quero transmitir é que, além de tudo o que engloba a experiência de uma viagem, a minha passagem por Bristol foi também sobre encontrar elementos familiares num contexto estranho e sobre a forma como estas aparentes disparidades podem abrir espaço à nostalgia da infância.

Não sei se, voltando a Bristol, conseguiria sequer encontrar o caminho para dar com aquele lugar outra vez. Talvez o clube de vídeo já lá nem esteja, uma vez que este acontecimento tem alguns anos. Mas gosto de acreditar que sim – que é um lugar que se mantém, sem recear a passagem do tempo, conquistando clientes e olhares curiosos pela memória, conforme aconteceu comigo.

Miguel 

Escrivaninha




Comentários

Anónimo disse…
Magnífico texto de uma experiência que rareia mas muito significativa!

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