O clube de vídeo da minha rua
Fazia um frio intenso na cidade
de Bristol em fevereiro. Acreditava que um ano a viver no Reino Unido me teria
preparado para as temperaturas baixas, mas as primeiras impressões ali
contrariavam-no. Sentia-o nos ossos e na pele seca, ressentindo o frio. Era a
primeira vez que visitava a cidade, que me transmitia uma estranha sensação
familiar. Não era que me fizesse sentir em casa; mas parecia comunicar com
algumas cidades portuguesas que conhecia, mas onde nunca tinha vivido.
Talvez a relação que estabeleço
entre Bristol e estas cidades a que me refiro seja inocente, demonstrando que não conheço realmente nenhuma delas. Ou talvez refletisse um sentimento de
nostalgia e melancolia causado pelas saudades de casa, que já se começavam a
fazer sentir naquela altura.
Ainda assim, uma das ruas mais
largas de Bristol fez-me por momentos sentir que estava na Avenida dos Aliados,
no Porto. Também a Ponte de Clifton, embora muito diferente, numa primeira
instância, me transportou para a Ponte de São Luiz. Já o ambiente académico da
cidade inglesa remetia-me à cidade de Coimbra, à medida que percorria o caminho
íngreme até à imponente Universidade de Bristol. E não só: as casas coloridas
perto do porto de Bristol levavam-me a acreditar que, por momentos, estava na Costa
Nova na linha da Ria de Aveiro, e a passagem do rio Avon pelo meio da cidade
lembravam-me também a zona central da cidade portuguesa.
Foi algures numa rua estreita,
num desses passeios sem destino – próprios de quem explora uma cidade sem
compromisso –, onde não via passarem muitas pessoas e onde distinguia apenas a
figura de um homem encostado a uma parede, a fumar, que dei de caras com uma
loja que me transportou diretamente para um outro lugar que já não visitava
fazia tempo: o clube de vídeo da minha rua.
A loja, ali em Bristol, quase me
passava despercebida, mas, ao passar por perto, a montra deteve-me. Três
cartazes de filmes relativamente recentes, de diferentes géneros, anunciavam as
novidades da loja. Um tanto intrigado com o espaço, espreitei pela porta. O
lugar não tinha ninguém, mas estava longe de estar vazio. Parecia até demasiado
pequeno para a coleção que angariava, distribuída numa série de estantes que
separavam diferentes categorias cinematográficas e cada uma delas completamente
preenchida.
O homem à porta, sem deixar o seu
posto, convidou-me a entrar. Assim fiz. Ele não me seguiu de imediato – como se
respeitasse a importância que o espaço poderia ter para mim e me quisesse dar
privacidade. Era mesmo um clube de vídeo antigo como eu nunca mais esperava
ver, mas exatamente como eu me lembrava: parecia estar entre uma loja de discos
e uma biblioteca. Havia por todo o lado caixas de DVDs e cassetes VHS,
organizadas meticulosamente.
Dediquei-me a uma secção e em
percorrê-la com a ponta dos meus dedos, como se os tivesse ainda pequenos,
propondo-me a explorar mais um filme, mais uma narrativa. Demorava horas a
encontrar um filme que me interessasse e que ainda não tivesse visto. Por
momentos, deixei de ser um adulto de férias num país estrangeiro. Era como se
regressasse aos meus anos de pré-adolescência.
Recordava, em catadupa, as
conversas que mantinha com o funcionário do clube de vídeo, que muitas vezes me
recomendava novos filmes, normalmente mais apropriados à minha idade do que
alguns dos filmes de terror que por vezes insistia em alugar. Foi numa
dessas conversas que me cruzei com Miyazaki pela primeira vez, antes de me
render aos encantos d’A Viagem de Chihiro.
Ao longo do tempo, as visitas ao
clube de vídeo tornaram-se mais raras, até desaparecerem. Aos poucos, a minha
experiência de cinema em casa tinha-se transformado com a insurgência das
plataformas de streaming. As
sugestões eram-me devolvidas através de um algoritmo e sentia-me a descartá-las
na maior parte das vezes. Por isso, não conseguia deixar de sentir que tinha
entrado numa máquina do tempo. Algures, encontrava-me com a minha versão mais
jovem, ao mesmo tempo que o homem acabava o seu cigarro e regressava para
dentro.
Tal era a minha absorção que só
reparei nele quando me perguntou se precisava de ajuda. Respondi-lhe que não,
distraído, mas logo de seguida comecei a fazer-lhe perguntas. Não discutimos
títulos, géneros nem recomendações. Explicou-me que o lugar sobrevivia com
clientes habituais, que continuavam a beneficiar da experiência de ir à loja;
de manter o diálogo sobre cinema a fluir; de se deixar perder em experiências
cinematográficas imprevisíveis – o que me reconfortou. Agradeci-lhe a atenção e
saí, continuando a minha viagem.
Revivendo a minha conversa com o
empregado que fumava, penso que «reconfortante» seria uma boa maneira de
descrever a minha experiência como turista em Bristol – embora esta não seja a
reflexão a que me proponho. Também não defendo que Bristol tenha o último clube
de vídeo do mundo sequer. Uma breve pesquisa diz-me que ainda existem em
Lisboa, embora nunca os tenha frequentado. O que quero transmitir é que, além
de tudo o que engloba a experiência de uma viagem, a minha passagem por Bristol
foi também sobre encontrar elementos familiares num contexto estranho e sobre a
forma como estas aparentes disparidades podem abrir espaço à nostalgia da
infância.
Não sei se, voltando a Bristol, conseguiria sequer encontrar o caminho para dar com aquele lugar outra vez. Talvez o clube de vídeo já lá nem esteja, uma vez que este acontecimento tem alguns anos. Mas gosto de acreditar que sim – que é um lugar que se mantém, sem recear a passagem do tempo, conquistando clientes e olhares curiosos pela memória, conforme aconteceu comigo.
Miguel
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