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Mensagens

A mostrar mensagens de novembro, 2019

Chamar a atenção ou à atenção

Na Escrivaninha, chamamos a atenção dos nossos leitores para os erros mais frequentes | Unsplash «Diz-se “chamar a atenção”, sem acento, ou “chamar à atenção”»? Quantas vezes esta dúvida não ecoa nas nossas cabeças — e quantas vezes nós não a ignoramos simplesmente porque um acento não fará mal a ninguém? Bem, antes de mais, façamos a ressalva: ter a dúvida não é vergonha nenhuma, mas ignorá-la talvez diga mais de nós — e sobre a nossa relação, tantas vezes descomprometida, com a nossa língua. Vamos então ver como é que um pequeníssimo acento grave pode provocar tamanha diferença, não só na realização fonética de cada uma destas expressões mas também, e sobretudo, no seu significado. Chamar a atenção  — onde o <a> é um artigo definido feminino (e uma vogal semiaberta) que precede o substantivo  atenção —  é uma expressão que significa «despertar ou atrair o interesse de alguém para alguma coisa», isto é, utiliza-se quando queremos dizer que «capt...

A queimadura

Ilustração de  João Maria A água fervia quando caiu no braço prático. De seguida, soou a reacção da boca com uma ordem. O braço direito foi, então, para o hospital («imagine-se», dizia a mente castradora) dentro de um  pirex  com água — porque não suportaria, de outro modo, os poros a gritar, intumescidos e furibundos, de dor. Na sala de espera, todas as bocas alheias se riram discretamente dele — havia-lhe dito o canto de um olho, que, de resto, nunca fora muito fiável, pelo pendor exagerado que sempre dava a determinados ângulos. De seguida, o braço teve direito a um comprimido rosa de compaixão e a um creme espalhado por mãos técnicas e cuidadosas. Como era de esperar, ao regressar a casa, o braço fez todos os pedidos que a uma vítima são devidos. Era, como muitos doentes, vermelho e raivoso (ainda) com o que lhe acontecera. Além disso, não estava senão habituado ao protagonismo que quase sempre se outorga a um braço direito: na escrita, no gesto, na...

Antes faça sol nas nossas cabeças

«Não pensei duas vezes, larguei o chinelo lá mermo e saí voado. O cana gritou na hora que ia aplicar. Passei mal, papo reto, fui correndo com o cu na mão, queria nem olhar pra ver qual ia ser. Lembrei do meu irmão, de nós jogando golzinho na rua. Ele era sempre o mais rápido, era neurótico na corrida. Eu tava correndo quase que nem ele, no desespero. Quase chorei de raiva. Eu sei que o Luiz não era X9, meu irmão nunca que ia xisnovar ninguém, morreu foi de bucha, no lugar de um vacilão desses daí que o mundo tá cheio. Isso sempre me enche de ódio. Meu corpo todo gelou, parecia que tava feito. Era minha vez. Minha coroa ia ficar sem filho nenhum, sozinha naquela casa. Mentalizei Seu Tranca Rua que protege minha avó, depois Jesus das minhas tias. Eu não sei como conseguia correr, menó, papo reto, meu corpo todo parecia que tava travado, eu tava todo duro, tá ligado? Geral na rua me olhando. Virei a cara pra ver se ainda tava na mira do verme, mas ele já tinha dado as costas...

Abaixo vs a baixo

Fonte: Unsplash Há duas expressões que as pessoas confundem constantemente na escrita:  a baixo  e  abaixo . Ora, se na oralidade o erro não se vê, quando escrevemos de pena ou caneta BIC em riste já não é bem assim. Quase sempre nos baralhamos com estas expressões que, apesar de terem as mesmas letras, se grafam de maneiras diferentes. E porque não queremos, meus caros, que vão para a cama com um peso na consciência — a pensar se na vossa dissertação de mestrado ou tese de doutoramento trocaram estas expressões — vamos, finalmente, esclarecer este imbróglio. Antes de mais, importa saber se pretendemos usar o  abaixo  ou o  a baixo , que têm, obviamente, grafias e sentidos diferentes. Vejam, então, a explicação abaixo. Exemplos com  abaixo : 1) «Imediatamente  abaixo  da minha nota, ficou a do Miguel.» 2)   « Abaixo  o acordo ortográfico!» Na frase 1) temos o advérbio de lugar  abaixo  us...

Sobre a tradição

Unsplash Com a aproximação do Natal, essa época tão festiva, julgo ser benéfico tirarmos um tempinho para pensarmos sobre a nossa natureza, e a importância da tradição. Quando falamos de tradição, acabamos sempre por ouvir as mesmas máximas atiradas por ambos os lados da barricada: «a tradição não é boa por ser antiga, mas é antiga por ser boa!» ou «a tradição é uma coisa antiquada, quando olhamos para ela com os olhos de hoje ela deixa de fazer sentido». O primeiro argumento toma como garantido que tudo o que é bom perdura, e que o que era bom no passado continua a ser bom no presente; o segundo argumento parte do pressuposto que o homem está em constante evolução e que os males do passado lá ficaram e que as bondades do presente para sempre cá ficarão. É no meio deste binómio que gostaria de pôr mais um galo nesta luta, tentando convencer-vos (na medida das minhas possibilidades) que as tradições são boas precisamente porque nós somos maus, mas mutáveis. O me...

Demandai-nos mais demandas destas!

Quem a ti te exige, a ti te demanda | Pixabay O substantivo  demanda  e o verbo  demandar  talvez não sejam as palavras mais utilizadas no dia-a-dia de todos os falantes de português, mas picam o ponto em muitas situações em que nos vemos obrigados a utilizar uma linguagem mais cuidada e formal, ou em algumas expressões cristalizadas pelo uso — fixo — da língua. Em todo o caso, nem sempre é claro o que significam estas palavras e, consequentemente, nem sempre é óbvio em que circunstâncias devem ocorrer e com que preposições devem ser utilizadas. Não é verdade? Então, cá vai: O verbo  demandar  pode ser um verbo transitivo — isto é, um verbo que precisa de um complemento no seu predicado — e, nesse caso, pode significar a acção de «intentar uma demanda contra algo/alguém», de «solicitar alguma coisa», de «exigir/reclamar» , de «procurar algo/alguém», de «ir à procura de algo/alguém». Vejam-se dois exemplos: 1) «O sequestrado...

As facas de V. Romão

Facas  foi o primeiro livro que li de Valério Romão e, pelos vistos, já vou bastante atrasada. Fui descobri-lo numa daquelas estantes de livros para partilhar que às vezes se encontram por aí, nos cafés, nos hotéis, nas livrarias… Desta vez, a estante não era bem uma estante, mas sim um cesto que encontrei num museu que frequento na vila de S. Brás de Alportel, no Algarve. O seu rosto vermelho e o tamanho maneirinho brilharam no fundo do cesto de vime e reparei que, ironicamente, o exemplar já tinha alguns cortes e rabiscos na capa e contracapa — aquelas marcas de uso próprias da vida dos livros e, diria eu, da vida dos livros sobre objectos cortantes. Fui descobri-lo numa daquelas estantes de livros para partilhar que às vezes se encontram por aí, nos cafés, nos hotéis, nas livrarias… Desta vez, a estante não era bem uma estante, mas sim um cesto que encontrei num museu que frequento na vila de S. Brás de Alportel, no Algarve. O seu rosto vermelho e o t...