Irlanda a 4 - parte II





Há um ano, fomos à Irlanda a 4. Hoje, o David e a Elsa contam como foi. Na semana passada o Zé e a Marta contaram-nos a sua experiência. Leiam a parte I aqui.
Uma breve passagem por Dublin
A
nossa viagem pela Irlanda começou muito antes da nossa chegada à ilha. O planeamento envolveu várias noites de jantar seguido de conversa, por vezes acesa, sobre que locais visitar, que estradas seguir, onde dormir, entre outras decisões.
Suspeitara já que não seria tarefa fácil organizar os detalhes desta viagem a quatro, visto que é raro o dia em que dois destes elementos não pensam em esganar o outro para que os seus planos e ideias levem a melhor.
O que é certo é que numa coisa todos estávamos de acordo: a nossa viagem começaria pela capital deste país, Dublin. Com alguma sorte encontrámos um alojamento que não nos obliterou o orçamento. Viemos mais tarde a descobrir que optáramos por uma das zonas da cidade historicamente conhecida pela sua elevada taxa de criminalidade e, até, pela presença da máfia. Mas para o nosso grupo foi o local ideal: não longe do centro e perto de um dos mais característicos pubs, o Cobblestone, da destilaria Jameson e, acima de tudo, de um LIDL — que se revelaria o nosso melhor e mais presente amigo ao longo da viagem.
Coincidentemente, o dia da nossa chegada foi também o dia em que a tempestade atlântica Leslie atingiu o nosso país de origem e o de destino, pelo que, após um passeio pelas margens e pontes do rio Liffey, em que a chuva e o vento se anunciavam, descobrimos o local ideal para nos refugiarmos ao temporal que aí viria, o Token.
Token revelou-se um misto entre restaurante e salão de jogos arcade. Foi aqui que nos deliciámos com hambúrgueres e tater tots, naquela que foi uma das mais saborosas refeições da nossa viagem e, sem qualquer dúvida, a mais pecaminosa. Como forma de gastar todas essas calorias, ainda houve tempo para um passo de dança num palco do final do século XX. Refiro-me, obviamente, ao Dancing Stage Euromix, um jogo de coordenação e ritmo onde os rapazes saíram muito elogiados pelos espectadores irlandeses. Já as raparigas… nem a coordenação alcançaram.



Com a tormenta a mostrar sinais de melhoria, a cidade parecia pronta para nos receber. O Trinity College, paragem obrigatória, brindou-nos com o Book of Kells, um manuscrito do século nove, que documenta os 4 evangelhos da vida de Jesus Cristo, fazendo as delícias das “Escrivaninhas”.
Passando ainda pela Long Room (inspiração clara para as bibliotecas de Hogwarts) pudemos contemplar uma colecção de livros e bustos datada desde o século dezasseis.
Recheados de história e cultura, rebolámos naturalmente para mais um museu — desta vez o Little Museum of Dublin. Fomos levados, pelas várias salas, por uma guia que nos explicou de um ponto de vista tendenciosamente feminista (no offense) a história mais recente da Irlanda. Dito assim parece que acabáramos de visitar apenas mais um museu mas, em retrospectiva, foi um dos pontos altos da nossa estadia em Dublin, segundo a opinião geral da nossa entourage.
Como se não bastasse, tivemos ainda direito a um desconto no restaurante do museu, onde mais uma vez (e não a última) a presença das batatas se fez sentir em todos os pratos — não fosse este um dos principais alimentos do povo irlandês.
No nosso último dia por Dublin, já ansiando pela road trip pelo resto do país, onde nos estrearíamos do lado “errado” da estrada, achámos que seria boa ideia dar novamente ouvidos à barriga. Acabámos por experimentar o famoso Full Irish Breakfast. Como prometido, ficámos de estômago cheio e partimos para a Christ Church Cathedral.
Nesta igreja do tempo dos vikings, deliciámo-nos com os easter eggs deixados pelos construtores de outrora, como é o caso do rosto de um animal com traços de primata, gravado numa das paredes interiores da catedral. Descemos ainda às criptas onde são mantidos os restos mortais de um gato em eterna perseguição de um rato — animais retirados do interior de um tubo do órgão da igreja. Percebemos onde o James Joyce se inspirou quando descreveu um intruso “… as stuck as that cat to that mouse in that tube of that christchurch organ”.
Seguimos para o museu do Chester Beatty, onde explorámos a variadíssima colecção deste magnata americano, munida de peças do antigo Egipto, passando por obras árabes, persas, japonesas e da cultura ocidental.
Foi no final desta visita que o nosso grupo, até agora unido unha com carne, se separou. Mas calma… não houve pescoços esganados. A equipa feminina, ainda sentindo uma lacuna de locais culturais, decidiu que não se juntaria à equipa contrária onde me incluo, que — como faria sentido num final de tarde de um dia chuvoso — , sugeriu visitar a taproom da Guiness, onde seria possível relaxar ao som de boa música, na companhia de uma cerveja artesanal.
Mais tarde e ligeiramente ébrios, reencontrámos as nossas caras metades, agora sim satisfeitas por terem percorrido os corredores do castelo de Dublin. Este reencontro pôs também um ponto final à nossa passagem pela capital da Irlanda, que tanto lembra outras cidades do norte da Europa — mas que me surpreendeu especialmente pela simplicidade e simpatia dos Dubliners.
E, como fixa o ditado popular “depois da tempestade vem a bonança”, no dia seguinte acordaríamos para um dia soalheiro, perfeito para atacarmos o countryside irlandês.
David Sousa
Pelo countryside irlandês
C
hegávamos a Bansha já ao início da noite. Depois de uma pequena volta de reconhecimento, parámos, por uns momentos, ao pé de um lago de atmosfera espectral. Um cisne branco flutuava com solenidade, alheio a nós.
Mas como a vida comum e prática se esgueira e nos entra pelo olhar adentro, mesmo em momentos de contemplação, lá recebemos, entretanto, uma mensagem da nossa anfitriã, dizendo que bastaria puxarmos um determinado cordel na porta da dita moradia, para termos acesso à chave que abriria o nosso abrigo. Assim o fizemos, como que numa aventura d’O Bando dos Quatro.
Foi com nervosismo que alguns de nós perceberam que pernoitaríamos numa casa de dois pisos, com muitos quartos, uma divisão atafulhada de bonecos e peluches de olhos esgazeados. Havia ainda uma casa de banho que, inteiramente em madeira, destoava das restantes divisões — e nos levava a perguntar acidamente «porquê?» — e um alçapão no tecto de um dos quartos — que especulámos poder levar-nos ao encontro de toda a espécie de locais ou entidades perturbadoras. Para melhorar, vários espelhos e quadros ajudavam à construção de um suspense hitchockiano ad eternum.
Com a expectativa de sermos tranquilizados, tentámos deduzir informações acerca da nossa anfitriã através da sua foto de perfil do airbnb. Infelizmente, e apesar da simpatia irlandesa se ter, até então, afirmado em cada local por onde havíamos passado, o semblante desta senhora parecia tão particularmente diabólico quanto o da sua vivenda. Foi, portanto, nestas circunstâncias que nos entregámos, com receio — alguns membros do grupo dirão que com «o peito insuflado de heroísmo» — , a uma noite dormida a medo e com medo.
Felizmente, acordámos com o tolo sorriso da sobrevivência gravado no rosto. Fizemos uma última refeição muito à pressa, e voltámos à viatura numa quase desesperada fuga.
De seguida, rumámos em direcção ao Rock of Cashelex-libris da arte celta e um importante exemplar da arquitetura militar medieval europeia, na Província de Munster.



Entre muitas outras funções, Rock of Cashel terá servido de residência, durante vários anos, aos reis de Munster até à Invasão Normanda, apesar de a maioria das edificações que chegaram até nós não remontar a essa época ainda mais antiga, mas antes aos séculos XII e XIII.
Rock of Cashel foi também «palco» da conversão do rei de Munster, por um tal de São Patrício, no século V e, depois de resistir a saques e pilhagens de variadíssimas tropas, no contexto de inúmeras guerras, viu o seu bélico passado amenizado pelos afinados e brandos cantos — assim imaginemos — do coro residente: The Hall of the Vicars Choral.
Mas o que mais me impressionou nestes edifícios ou reminiscências deles foram os macabros «camarotes» destinados aos leprosos que quisessem ouvir a missa. De modo a evitar o contágio, permaneciam em pequenas reentrâncias, construídas nas laterais da igreja, longe da vista dos católicos sãos. Ainda hoje podemos ver esses buracos talhados na pedra, enquanto imaginamos alguém devorado pela lepra, segregado e aninhado na vergonha, em animalescas cócoras, à espera da morte — espreitando ao mesmo tempo a promessa de uma missa redentora.
Sentia-me na vívida presença daquele passado longínquo, incrivelmente preservado até ao nosso século XXI, à custa de leves condicionantes — como, por exemplo, a limitação do número de visitantes a dez, à entrada da capela do Rei Cormac Mac Carthaigh, construída na fragilidade do arenito. Evitava-se, assim, que a respiração, as tosses, os espirros e o catarro de uma quantidade excessiva de pessoas modernas e bisbilhoteiras causasse danos no edifício secular.
Depois de ouvirmos as várias narrativas que Rock of Cashel abrigara, a fome fez-nos regressar ao presente. De novo na nossa viatura, seguimos para a vila piscatória de Kinsale, a sul de Cork, onde as casas baixas e coloridas davam uma leveza cândida, infantil e pitoresca à vila. Percorremos algumas pequenas e deliciosamente encafuadas livrarias e fizemos algumas compras.
Finalmente, depois de alguma reflexão quase monástica, decidimos comer fish and chips em dose cavalar e deixar para Portugal um eventual regime de alimentação mais ascético.
Seguiu-se um passeio por entre os tons benevolentes da paisagem, cujo primor nos dava a sensação de encararmos um quadro mimetizando de tal modo a realidade que quase se duvidava da veracidade da natureza irlandesa. A paisagem de tons acastanhados, a imponência das altas árvores, os impassíveis lagos e o vago rumor dos pássaros acompanharam-nos durante alguns quilómetros.
Já no final do dia, de volta ao nosso carro alugado e à estranheza da faixa esquerda da estrada, seguimos para Killarney, onde, por entre a noite cerrada, avistávamos aquele que seria o nosso alojamento para essa noite, onde viríamos a ser recebidos pelo hospitaleiro irish accent de uma senhora ruiva e sorridente:
— Darrrlings!
Elsa Alves
Fotografias: David Sousa
Revisão e edição: Escrivaninha

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