Sobre a tradição




Com a aproximação do Natal, essa época tão festiva, julgo ser benéfico tirarmos um tempinho para pensarmos sobre a nossa natureza, e a importância da tradição.
Quando falamos de tradição, acabamos sempre por ouvir as mesmas máximas atiradas por ambos os lados da barricada: «a tradição não é boa por ser antiga, mas é antiga por ser boa!» ou «a tradição é uma coisa antiquada, quando olhamos para ela com os olhos de hoje ela deixa de fazer sentido». O primeiro argumento toma como garantido que tudo o que é bom perdura, e que o que era bom no passado continua a ser bom no presente; o segundo argumento parte do pressuposto que o homem está em constante evolução e que os males do passado lá ficaram e que as bondades do presente para sempre cá ficarão.
É no meio deste binómio que gostaria de pôr mais um galo nesta luta, tentando convencer-vos (na medida das minhas possibilidades) que as tradições são boas precisamente porque nós somos maus, mas mutáveis.
O meu argumento é simples, mas nem sempre fácil de explicar. Por isso, tendo de começar por algum lado, começaria por tentar responder à pergunta «O que é uma tradição?».
Priberam (Fonte das Fontes! Oh, suprema razão!) define tradição primeiramente como: «via pela qual os factos ou os dogmas são transmitidos de geração em geração sem mais prova autêntica da sua veracidade que essa transmissão». Esta definição (além de ser altamente pessimista) peca por ignorar a tradição como elemento de criação e fidelização de comportamentos sociais. Se tivesse de apresentar outra definição diria algo do género: «via pela qual comportamentos ou dogmas são transmitidos de geração em geração legitimando-se através dessa mesma transmissão».
Utilizando a última definição temos de nos questionar porque é que queremos que certos comportamentos e dogmas sejam transmitidos de geração em geração. A resposta mais óbvia é porque esses comportamentos são bons e esses dogmas são úteis para a nossa sobrevivência e evolução como seres sociais e desenvoltos. Vejamos o Natal: descontando as doses industriais de lixo e alguns excessos de gula e consumismo, é difícil encontrar algo de errado em passar tempo com a família, trocar presentes com aqueles que mais amamos, comer de forma obscena e, para os católicos que estejam entre nós, celebrar o nascimento daquele que é um dos pilares morais da nossa sociedade («All fine and dandy», parece-me).
A nível de dogmatismos, vejamos aqueles que são os dogmas mais transversais ao mundo ocidental, os Dez Mandamentos:
1. Amar a Deus sobre todas as coisas
2. Não invocar o santo nome de Deus em vão
3. Santificar os Domingos e Festas de Guarda
4. Honrar pai e mãe
5. Não matar
6. Não cometer adultério
7. Não roubar
8. Não levantar falsos testemunhos
9. Guardar castidade nos pensamentos e nos desejos
10. Não cobiçar as coisas alheias.
O 1.º e o 2.º vou deixar, por enquanto, de parte por não ter grande pachorra para teologias. O 3.º tem o propósito muito prático de materializar o direito ao descanso e o direito à adoração religiosa como pilar moral (e é só isso que digo a nível teológico). O 4.º faz sentido se tomarmos os progenitores como transmissores não só de conhecimento, mas de estrutura para o nosso desenvolvimento pessoal, moral e até económico. O 5.º parece-me bastante óbvio (pelo menos a mim, que detesto ser morto). O 6.º, o 7.º, o 8.º e o 10.º têm todos o mesmo problema: é excelente ser um adúltero, um ladrão, um mentiroso ou um ‘cobiçador’ bem sucedido, o problema é que para cada uma destas figuras há uma vítima de roubo, uma vítima da mentira, uma vítima de cobiça e, pior ainda, uma vítima de adultério — e nenhuma delas será um membro tão feliz da nossa sociedade, o que aumenta drasticamente a possibilidade de andarmos por aí a quebrar o nosso número 5. Por fim, o 9.º mandamento é um ‘cadito mais difícil de defender, mas se tivesse de ser altamente conservador sobre este assunto diria que todos os pouco castos no que à acção diz respeito são, normalmente, pouco castos no pensamento e no desejo (se bem que nem todos os poucos castos no pensamento e no desejo sejam pouco castos na acção).
Mas tudo isto foi uma forma muito longa de dizer o quê? Que as tradições têm o propósito de cimentar comportamentos e dogmas que (em princípio) são positivos para a nossa sociedade! E porque é que temos de cimentar esses comportamentos? Porque, em última instância, estamo-nos completamente a marimbar para este assunto! Sim, é verdade. «O Natal é quando um homem quer», dizem eles, mas dentro do livre arbítrio que possuímos, quantos de nós já fizeram um Natal em Agosto? Quantas vezes aparecemos todos para um jantar em família de forma completamente espontânea? E quantos de nós já não teríamos cedido ao temível apelo do roubo, do adultério, do prazer mais mundano e imediato (com as piores das repercussões) se não tivéssemos o peso terrível de séculos de História repetida a julgar-nos no nosso subconsciente?
Há um lado ainda pior disto tudo: as tradições (ou grande parte delas, pelo menos) são um relembrar constante de que há coisas terríveis neste mundo ou, pelo menos, de que nós não ligamos tanto às coisas boas como devíamos! 

Porque é que temos Natal? Para nos relembrarmos que se não tivéssemos uma data fixa do ano para o fazer, simplesmente não daríamos tanto valor como deveríamos àqueles que amamos. 

E a Páscoa? Porque há fome e morte. Sexta-feira Santa? Porque alguém foi capaz de se sacrificar de forma violentíssima pelo seu amor aos outros e por aquilo que acreditava estar certo. A tourada? Porque houve uma altura em que tínhamos de defrontar a natureza utilizando apenas o nosso intelecto e habilidade. Aquela tradição horrível da queima do gato? Porque houve uma altura terrível em que éramos, de forma generaliza, mais burros (ou, pelo menos, terrivelmente aborrecidos, divertindo-nos com estas coisas). E não estou a brincar, a queima do gato era uma forma de entretenimento generalizada por toda a Europa, e não quero que nos esqueçamos que já fomos assim.
Sinto que vos estou a vender as chamas do inferno com uma violência calvinista, mas não desesperem, o ser humano tem uma arma fortíssima e muitas vezes ignorada: o ser humano muda! Muda, adapta-se e, acima de tudo, constrói sobre bases cada vez mais seguras e largas. E são essas bases que temos de preservar a todo o custo. Porque quando estamos no topo de uma torre é fácil de achar que o primeiro degrau está muito longínquo, ou que a primeira pedra é muito velha e inútil, mas uma torre não se constrói no ar, e cada pedra que tiramos da base enfraquece toda a estrutura.
Em última instância, a tradição não é boa — ou melhor, é um pouco como o remédio, sabe mal mas acaba por nos fazer bem e, por isso, consumimo-lo com uma colher de açúcar. Mas de todos os pais natais e coelhinhos da páscoa às mais grandiosas saídas em ombros (com duas orelhas e um rabo), nunca nos esqueçamos de duas coisas: temos todas as capacidades para praticar o mal e a vida nem sempre é boa. E se não formos relembrados disso — e de que nos podemos melhorar — é muito provável que voltemos a ser aquilo que não queremos.
Edição e revisão: Escrivaninha

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