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Diário de bordo



A bordo
Diário de bordo | Fonte: Pixabay


Viajar fora sempre um grande cansaço, por muito que acabasse (quase) sempre por compensar.


As fartas horas de antecedência, o cheiro pesado das malas e o suor dos casacos vestidos ou o desconforto de os ter amarrados à cintura, as chaves de várias casas, os bilhetes e os documentos de identificação sempre perdidos pelos diversos bolsos ou malinhas, o duty free sempre cheio de gente interessada e de oportunidades imperdíveis, os cafés extremamente caros, as sandes pouco nutritivas e os bancos desconfortavelmente corridos e frios nas irrespiráveis salas de espera...

Só não parecia atinar com o número de livros e cadernos que conseguia carregar. Nesse aspecto, o que arrumava na mochila parecia-lhe sempre pouco para o tempo que estaria fora e a ansiedade causada pela ideia de lhe faltar o que ler em terras distantes das suas estantes acabava sempre por vencer o desconforto de carregar mais uns quilos (muitas vezes inúteis) na mochila.

Naquele dia, porque lhe calhara um cartão de embarque com aquele serviço que distingue os viajantes executivos daqueles que, com a plebe, esperam nas filas, o doce acaso do prémio era a novidade do dia. Claro, quem não fica contente quando lhe é aleatoriamente atribuído um cartão de embarque prioritário? Sobretudo quando não há nenhum motivo para que se tenha prioridade sobre qualquer outra pessoa, mas não se pode cedê-la a mais ninguém, como se faz nos autocarros ou nas filas de supermercado.

Na despedida ou no regresso a casa havia quase sempre alguém conhecido... 

Em todo o caso, o cenário era praticamente perfeito para quem quer imaginar. Viajar é mesmo assim: qualquer que seja a nossa razão para embarcar parece-nos que a razão dos outros – dos desconhecidos que se sentam ao nosso lado – é sempre mais intrigante e jovial do que a nossa. 

Mas agora, num avião recheado de turistas que lhe aterrariam em casa – onde ela achava já ter visto tudo –, carregados de espírito de aventura e de vontade de fazer férias no paraíso, a pergunta já não podia deixar de ser outra: «Porque é que regressar a casa tem um entusiasmo tão diferente de fugir de casa?»
  
O hábito de partir e de regressar a casa tornara-a experiente em fazer malas, mas uma vida em viagem não bastaria para a convencer a gostar da tarefa. Estava relativamente à vontade com a confusão dos aeroportos, quase indiferente às turbulências dos voos – mesmo dos piores – e praticamente perita em 'adiantar trabalho ou leitura' em qualquer cantinho onde se pudesse sentar durante meia hora. 

Sabia bem o que oferecia cada um dos aeroportos que mais frequentava, onde ficavam as casas de banho, que revistas comprar (embora raramente as comprasse) e com o que contar para a refeição em cada companhia aérea (ou, na grande maioria dos casos, que farnel levar preparado de casa).
  
Chegara ao aeroporto com antecedência, deixara a bagagem no drop off – completamente sozinha, dado que já era tudo automático e self service — e seguira para a zona da restauração, onde esperaria, como sempre, de livro na mão, até que o voo atrasasse pelo menos 30 minutos e fosse encaminhada para a porta de embarque correcta onde, certamente, encontraria alguém conhecido.

Mas desta vez enganara-se. O voo ia cheio, mas sem uma única alminha que pudesse reconhecer – ou que, aliás, sequer falasse a sua língua... O turismo era, de facto, um sector em crescimento, e o arquipélago estava a ser cada vez mais afectado por isso. Mas não podia deixar de ser estranho viajar para uma terrinha tão pequenina, onde o multilinguismo não abunda, e nunca ouvirmos falar a nossa língua.

Não soube responder. Talvez porque, mesmo estando de regresso, não «ouvir falar português» apenas adensava a saudade a que aquela e qualquer outra viagem sempre obrigavam.


Marta Cruz

Comentários

Délia Fagundes disse…
Que maravilha ter a possibilidade de te ler, Marta!
Abraço apertado!
Marta Cruz disse…
Professora, que maravilha ter-me encontrado! :)

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