À conversa com Camilo


Camilo Castelo Branco
À conversa com Camilo | Ilustração da Ana Xavier

– Sou obrigado a pedir desculpa ao meu paciente leitor: aqui estou eu, novamente em deambulações que em nada interessam a quem me lê. Pobre de mim!

– Desculpas dessas podiam ser facilmente evitáveis, não lhe parece? Não costumo ser tão adepta desta filosofia, mas estou convencida de que aqui se aplica!

– Sabe, devia guardar essas suas rudes críticas para quem não seja, como eu sou, um baluarte da literatura portuguesa do século XIX! Meu caro, tenha respeito!

– Pff... Camilo, nunca diria semelhante coisa! Até podia estar coberto de um orgulho aristocrático, mas se há coisa que me parece coerente na sua figura é essa sua constante vontade de ser vítima do mundo. Isso e, claro, o seu vocabulário maravilhosamente genioso!

– Vítima do mundo?! Eu?

– Então não é, senhor Castelo Branco? Bem sabe que na inocência dessa pergunta esconde precisamente essa sua... Pense lá comigo: passional ou terrífico, você e as suas criações (ou as suas criações e você, como preferir) são eternas prisioneiras das desgraças, vítimas do mais redondo dos males. E, muito bem, meu caro senhor, muito lhe agradecemos essas almas visceralmente expostas! Mas isso não lhe dá permissão para se perder em historietas...

– Vejo, pela certeza com que fala, que é capaz de ter alguma razão no que diz. Mas eu sou um homem de letras! E vivo das linhas que preencher – seja com malfadadas vinganças, doenças de amor ou desabafos de narrador. Certamente o compreenderá... Um bom escritor é fiel e sincero para com quem o segue e, mesmo que a minha incapacidade de divagar subtilmente possa, tantas vezes, ser causa de impropérios, talvez deva um pedido de desculpas aos leitores mais impacientes, aos que me lêem mas não aceitam todos os recantos da minha viagem (ou que não sabem que escrever é o meu (parco) ganha-pão. Ah! E já para não falar de que, quando divago, todos os que me lêem divagam também: é um movimento natural que só os olhos mais teimosos insistem em evitar.

– Hoje está muito mais arrogante do que eu o sabia, senhor Castelo Branco... Aliás, perdoe-me o apelido 'arrogante' quando finge tão bem não o ser! Melhor ainda: evitem-se todas as desculpas. Diga-se antes que, hoje, está muito atrevido e talvez até pouco trágico para quem tanto chora.

– Criatura de Deus! Mas você perdeu-se pelas Memórias do Cárcere? Deixou lá alguma peça fundamental do seu coração? Não me acuse de maldades que o escrever que eu escrevo é escrito tanto para mim quanto para os outros! Sou odioso aos que levam uma vida bela e farta porque lhes lembro que a desgraça existe?

– Olhe, talvez seja mesmo isso... Ou talvez seja sobretudo agradável àqueles a quem a maioria das desgraças acontece. Assim, uma alma quase misericordiosa, com cujas tramas esses leitores se identificam e para com quem se compadecem ao ponto de relativizarem as suas dores... Ou talvez seja, simplesmente, desagradável mesmo a esses, por lhes recordar os azares!

– Sou a alma do português romântico, que sofre e que se extasia! Em mim não há um pingo de vida que não tenha ornamentos e que não me traga lágrimas. 

– Quer ser o Homem e não um homem, portanto... Que cansativo isso deve ser! Perceba apenas que há pouco mais que possamos fazer neste mundo além de navegar em mares demasiado profundos e em ondas que incham, subindo, só para depois caírem a pique. Acredite, tenho muito pouco contra, mas será sempre muitíssimo difícil defendê-lo perante os que não gostem de embarcar em galeras condenadas a naufragar. É como defender Saramago perante um leitor lento e amante de vírgulas a cada complemento: não há como.

– Gostos não se discutem, não é verdade?

– É, sim.

– Sejamos, então, justos com as minhas linhas e deambulações melancólicas — que eu ainda não roço Soares de Passos, esse sim, pobre homem!... Ai, lembro-me quando ouvi falar no tal Noivado do Sepulcro: grandiosa a obra, mas pobre da assombrada alma que a escreve!! Aquele homem deve ter tido muito pouco de feliz, não acha? Ou foi-o em demasia... Se tiver sido demasiado feliz talvez aquela melancolia nem sempre lhe tenha estado entranhada, talvez tenha sido como o diabo daquele ditado do «primeiro estranha-se, depois entranha-se». Ah, mas que alma penada, meu caro leitor, ele sim, entregue à desgraça de si próprio! Só lhe faltou ficar cego e apontar uma arma à cabeça para ser expoente máximo dos espíritos sofredores. Ganhei-lhe eu!

– Camilo...

– Ah, não tenha pena! Foi inebriante! Pobre Ana, a chegar com o médico dois segundos atrasada apenas...

– Camilo, olhe que eu salto esta parte...

– Foi sempre uma ideia que me agradou: o pôr termo à vida. Talvez eu e as minhas criações, (ou as minhas criações e eu) sejamos assim dolorosos mesmo por isso. Ah, São Miguel de Seide, que bonita aquela sala...

Não saltei.
Marta Cruz

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